Diário de Notícias

Mostra 71 obras da pintora que diz que em Portugal “ninguém quer saber” do seu trabalho

Do Ocidente para o Oriente

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MARIANA PEREIRA No 8.º ano de escolarida­de, o livro de Português de Natália Gromicho era ilustrado por pinturas várias. “Eu recortei-as todas e fiz um bloco, para saber o nome deles. Picasso, Klimt, Modigliani... Ainda o tenho.” A pintora tem hoje 39 anos – “feitos há pouco tempo”, haveria de repetir – e pinta há mais de 20. Encontramo-la por entre as suas telas – 71 –, que formam a mostra Do Ocidente para o Oriente, no Museu do Oriente. E encontramo-la chegada desse lado do mundo. Como quase sempre acontece no final de uma longa viagem, algo mudou. No caso de Natália, aconteceu em 2015, em Singapura. Mostra os quadros onde tal aconteceu. Quadros como O Treino do Samurai ou Avenida de Tóquio. A sua pintura descobriu um abstracion­ismo profundo, e o figurativo ficou lá atrás. “Acho que figurativo toda a gente faz...”, diz ao DN.

“Já posso ir pintar?”, pergunta pouco depois das 14.00 de sexta-feira, hora para que estava marcada a sessão de pintura ao vivo, aberta ao público. Nada de estranho para a pintora cujo ateliê, no Espaço Chiado – antiga galeria da Câmara Municipal de Lisboa –, não tem paredes, mas vidraças. Qualquer um pode vê-la pintar. “A partir daí habituei-me. Ninguém me vê, ninguém para. É uma maneira de ser diferente. Eu quero ser sempre diferente de tudo o que já existiu. Onde é que está uma miúda de 39 anos a pintar ao vivo no Museu Oriente ou em qualquer museu que exista em Portugal?”, pergunta.

Natália tinha uma só ideia quando se dirigiu à tela que haveria de ser rodada pelo seu assistente, Gonçalo Madeira, durante todo o processo – ora a 90º ora a 180º graus. Azul-da-prússia. “Hoje era azul-da-prússia. Trouxe feito, mas sei fazer. Com o preto e o azul-cobalto, azul-marinho, mistura-se tudo com um castanhozi­nho e dá o prússia.” Aquela cor, diz, “é Lisboa. Mesmo”. E é em Lisboa que estamos, na cidade onde nasceu, apesar da música que se ouvia. A banda sonora do filme O Tigre e o Dragão (2000), de Ang Lee, toca em loop nos dias da pintora, que garante ainda se sentir em Macau. Passou lá duas semanas a pintar, em residência na Casa Garden, da Fundação do Oriente de Macau. “O dia-a-dia lá era um sonho”, conta, acrescenta­ndo que o pior desse tempo foi o dia em que a arrastaram para Hong Kong. “Só para conhecer.”

O Oriente de Natália Gromicho começou em 2014, em Timor-Leste, com um convite da embaixada portuguesa em Díli sobre direitos humanos. Singapura, Índia, China e Macau viriam depois. Conta que, ao pintar ao vivo em Timor, e “a ouvir [The] Prodigy, as pessoas passavam e diziam: ‘Não entendo o que estás a fazer.’ Eu dizia: ‘Tu para entenderes o que está aqui tens de passar muito na tua vida, estudar muito, ver muita coisa, viajar muito.’” Todavia, logo a seguir Natália apontava para um dos quadros da exposição, feitos entre 2012 e 2016, e dizia: “É básico. Os prédios, a chuva, toda a gente vê isso.”

O Oriente convocou a sua pintura a partir daquela Singapura que Natália viu “emergir. Havia gruas por todo o lado, obras por todo o lado. Tudo geométrico. Olhe, é isto [aponta para os quadros]. Cheguei a Macau, e também lá está tudo a emergir. Pontes, pontes...” A pintora evoca a disciplina do Oriente e diz querer “romper com a perfeição, que não existe”.

Começou por estudar ciências, depois mudou para artes. “Estúpida, em Portugal não dá, mais valia ter ido para enfermeira­zinha.” Acabaria por estudar na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e na Ar.Co. Já expôs nos EUA, Brasil, Austrália, Rússia, e Europa fora. Esta é a sua primeira grande exposição a solo no seu país, em Lisboa. “É a minha cidade, nasci aqui, mas ninguém quer saber de mim”, lamenta. Ainda assim, diz que vende no seu país. “Não me posso queixar. Mas as contas são com aquele [diz, apontando para o assistente], que eu ainda sou do escudo.” E o Oriente, esse, “é tão distante, demora tanto tempo até a gente lá chegar...”

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