Diário de Notícias

Um tubarão no cinema

Chega amanhã aos cinemas Águas Perigosas. Um filme de verão a desafiar a saga de Spielberg.

- JOÃO LOPES

Noutros tempos de vidas menos aceleradas, porventura mais ingénuas, uma boa receita para o chamado “filme de verão” podia envolver três ingredient­es mágicos: uma praia paradisíac­a, algumas jovens em biquíni e as canções de Elvis Presley... Assim mesmo. Reveja-se a aventura que ele protagoniz­ou em 1967, à procura de um tesouro no fundo do mar; tinha um título original suavemente moralista sobre o valor efémero da riqueza, Easy Come, Easy Go, mas o tradutor português achou por bem esclarecer todas as dúvidas e chamou-lhe Piratas em Biquíni.

Os tempos mudaram – a prova está no emocionant­e Águas Perigosas (estreia amanhã). Porque a crise impõe as mais perversas formas de austeridad­e, temos “apenas” uma jovem em biquíni, Nancy, aliás apostada em cumprir uma tarefa, não banalmente materialis­ta, mas de redenção afetiva: vai fazer surf na mesma praia (paradisíac­a, podem crer) em que a mãe soube que ela ia nascer – tudo se passa num recanto esquecido do México, mas como o cinema é uma arte de muitos enganos partilhado­s, o filme foi rodado na Austrália. No problem. Quem assume, então, o papel de Elvis? Digamos que cantar Love Me Tender não será a sua especialid­ade: não se pode pedir tanto a um solitário tubarão – quando olha para cima, o seu comovido fascínio pelas pernas de Nancy é puramente degustativ­o, sem metáfora.

Numa temporada marcada pelo esvaziamen­to dramático dos filmes de super-heróis, executados por equipas de “efeitos especiais” sem qualquer gosto pelo cinema, sabe bem encontrar um filme como Águas Perigosas. Há nele um velho gosto de série B, capaz de transforma­r uma improbabil­idade à beira do inverosími­l num vibrante exercício narrativo (lembramo-nos dos filmes produzidos por Roger Corman que, ao longo da década de 60, confiou em alguns jovens desconheci­dos como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese).

A bizarria da situação está, de algum modo, reconhecid­a no título original, The Shallows (à letra: baixios, águas pouco profundas). Um tubarão num contexto daqueles é, antes de qualquer explicação mais ou menos ecológica, uma eficaz ideia de argumento. Que é como quem diz: a velha lição de Steven Spielberg, em Tubarão (1975), continua válida. E tanto mais quanto o filme recusa a facilidade da aceleração postiça de muitos produtos contemporâ­neos que confundem a “velocidade” da montagem com a criação de emoção. O fator humano Sobretudo na primeira parte de exposição das linhas de força do drama, Águas Perigosas apresenta-se como um filme inteligent­emente contemplat­ivo em que a tensão nasce da metódica observação do espaço, quer dizer, da estranheza das imagens e também da envolvênci­a dos sons. Vogamos, afinal, sobre (e sob) as ondas da mais primitiva e inquietant­e parábola: a mãe natureza pode ter tanto de acolhedor como de devorador – o fator humano é o milagre que sobrevive no interior dessa contradiçã­o.

Produzido pela Columbia, uma major de Hollywood, e dirigido pelo espanhol Jaume Collet-Serra (que se tornou conhecido em 2005 com o filme de terror A Casa de Cera), Águas Perigosas ilustra um curioso movimento de recuo estratégic­o de alguns grandes estúdios. Compreende­ndo que as grandes máquinas promociona­is serão sempre a exceção, não a regra, trata-se de (re)valorizar as potenciali­dades – criativas e comerciais – dos objetos de pequeno orçamento (o seu custo de 17 milhões de dólares é quase anedótico num contexto em que as sagas de super-heróis tendem a ultrapassa­r os 200 mi-

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 ??  ?? Blake Lively, que em outubro estará de regresso aos grandes ecrãs em Café Society, de Woody Allen, protagoniz­a este Águas Perigosas no papel da surfista Nancy
Blake Lively, que em outubro estará de regresso aos grandes ecrãs em Café Society, de Woody Allen, protagoniz­a este Águas Perigosas no papel da surfista Nancy

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