Um tubarão no cinema
Chega amanhã aos cinemas Águas Perigosas. Um filme de verão a desafiar a saga de Spielberg.
Noutros tempos de vidas menos aceleradas, porventura mais ingénuas, uma boa receita para o chamado “filme de verão” podia envolver três ingredientes mágicos: uma praia paradisíaca, algumas jovens em biquíni e as canções de Elvis Presley... Assim mesmo. Reveja-se a aventura que ele protagonizou em 1967, à procura de um tesouro no fundo do mar; tinha um título original suavemente moralista sobre o valor efémero da riqueza, Easy Come, Easy Go, mas o tradutor português achou por bem esclarecer todas as dúvidas e chamou-lhe Piratas em Biquíni.
Os tempos mudaram – a prova está no emocionante Águas Perigosas (estreia amanhã). Porque a crise impõe as mais perversas formas de austeridade, temos “apenas” uma jovem em biquíni, Nancy, aliás apostada em cumprir uma tarefa, não banalmente materialista, mas de redenção afetiva: vai fazer surf na mesma praia (paradisíaca, podem crer) em que a mãe soube que ela ia nascer – tudo se passa num recanto esquecido do México, mas como o cinema é uma arte de muitos enganos partilhados, o filme foi rodado na Austrália. No problem. Quem assume, então, o papel de Elvis? Digamos que cantar Love Me Tender não será a sua especialidade: não se pode pedir tanto a um solitário tubarão – quando olha para cima, o seu comovido fascínio pelas pernas de Nancy é puramente degustativo, sem metáfora.
Numa temporada marcada pelo esvaziamento dramático dos filmes de super-heróis, executados por equipas de “efeitos especiais” sem qualquer gosto pelo cinema, sabe bem encontrar um filme como Águas Perigosas. Há nele um velho gosto de série B, capaz de transformar uma improbabilidade à beira do inverosímil num vibrante exercício narrativo (lembramo-nos dos filmes produzidos por Roger Corman que, ao longo da década de 60, confiou em alguns jovens desconhecidos como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese).
A bizarria da situação está, de algum modo, reconhecida no título original, The Shallows (à letra: baixios, águas pouco profundas). Um tubarão num contexto daqueles é, antes de qualquer explicação mais ou menos ecológica, uma eficaz ideia de argumento. Que é como quem diz: a velha lição de Steven Spielberg, em Tubarão (1975), continua válida. E tanto mais quanto o filme recusa a facilidade da aceleração postiça de muitos produtos contemporâneos que confundem a “velocidade” da montagem com a criação de emoção. O fator humano Sobretudo na primeira parte de exposição das linhas de força do drama, Águas Perigosas apresenta-se como um filme inteligentemente contemplativo em que a tensão nasce da metódica observação do espaço, quer dizer, da estranheza das imagens e também da envolvência dos sons. Vogamos, afinal, sobre (e sob) as ondas da mais primitiva e inquietante parábola: a mãe natureza pode ter tanto de acolhedor como de devorador – o fator humano é o milagre que sobrevive no interior dessa contradição.
Produzido pela Columbia, uma major de Hollywood, e dirigido pelo espanhol Jaume Collet-Serra (que se tornou conhecido em 2005 com o filme de terror A Casa de Cera), Águas Perigosas ilustra um curioso movimento de recuo estratégico de alguns grandes estúdios. Compreendendo que as grandes máquinas promocionais serão sempre a exceção, não a regra, trata-se de (re)valorizar as potencialidades – criativas e comerciais – dos objetos de pequeno orçamento (o seu custo de 17 milhões de dólares é quase anedótico num contexto em que as sagas de super-heróis tendem a ultrapassar os 200 mi-