Quer exercer um cargo público? O melhor é ter estudos, diz juiz
Numa decisão sobre a Câmara da Povoação, nos Açores, juiz do Tribunal de Contas diz que quem quer ser autarca deve ter “qualificações”. Se não as tiver: ou arranja ou abre “caminho a outros profissionais mais capazes”
Se pretender exercer um cargo político executivo – autarca ou ministro – o melhor é ter “qualificações” e os devidos estudos. O conselho é do juiz conselheiro do Tribunal de Contas João Aveiro Pereira, que, numa sentença de maio sobre a Câmara da Povoação, nos Açores, desconsiderou o argumento da impreparação técnica de três antigos autarcas, dizendo que “quem se propõe a estes cargos dirigentes deve certificar-se de que possui as qualificações e capacidades suficientes para os desempenhar”.
Os três antigos autarcas foram condenados pelo Tribunal de Contas (TC) por várias infrações financeiras durante o respetivo mandato. Estas tinham que ver com um plano de saneamento financeiro da autarquia, o qual obrigava a câmara a uma série de medidas de “austeridade” que, segundo o tribunal, não foram cumpridas. Por isso, Francisco Álvares (antigo presidente), Maria Medeiros Vieira e Gualberto Bento (ex-vereadores) foram condenados a multas, 15 500 euros para o ex-presidente, 7680 euros e 1920 euros para os antigos vereadores, respetivamente.
Antes da condenação, os três ex-autarcas alegaram em sua defesa não disporem de “conhecimentos na área da gestão e jurídica” e que, por isso mesmo, não agiram com dolo, nem negligência. Dos três, apenas o antigo presidente da Câmara é licenciado, em Educação Física. Porém, se o argumento até foi acolhido pelo juiz conselheiro João Aveiro Pereira no que diz respeito ao dolo (uma intenção), o mesmo não aconteceu quanto à negligência. Porque, para o magistrado do Tribunal de Contas, quem não possui determinadas qualificações – “embora não seja obrigatório que todos os eleitos do poder local sejam licenciados ou especialistas em direito” – “não está à altura das inerentes responsabilidades”.
E, continuou João Aveiro Pereira, “se, mesmo assim, se faz eleger, tem a obrigação de tomar providências para suprir essa insuficiência ou confessar tal impreparação e, por exemplo, renunciar aos cargos, abrindo assim caminho para que outros profissionais mais capazes os exerçam”. Ou seja, pessoas com mais estudos.
No fundo, para o juiz do Tribunal de Contas, “exercer um cargo de dirigente, com competência para assumir compromissos, autorizar despesas e pagamentos com dinheiro dos contribuintes, sem para tanto estar devidamente preparado, revela temeridade e constitui só por si violação dos deveres de cuidado e de diligência, geradora de perigo para a gestão e para o erário públicos”.
Para o constitucionalista Pedro Bacelar Vasconcelos, a argumentação do juiz conselheiro merece duas notas: por um lado, “nem a Constituição, nem o Estatuto dos Eleitos Locais impõem habilitações literárias aos candidatos”. Porém, e falando apenas na qualidade de professor de Direito Constitucional, “os eleitos devem rodear-se de pessoas que os alertem para as consequências dos seus atos no âmbito do exercício das suas funções”.
O Estatuto dos Eleitos Locais não faz qualquer menção às habilitações necessárias para um cidadão ser elegível. Apenas são inelegíveis os cidadãos “interditos por sentença transitada em julgado”, os que “estejam privados de direitos políticos, por decisão judicial transitada em julgado” e, por fim, “os notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico, ou como tais declarados por uma junta de três médicos”.
Ao DN, Francisco Álvares, eleito pelo PSD em 2001, considerou que os fundamentos do juiz não “foram felizes”, “nenhum autarca fez um curso específico de autarca. As pessoas têm as mais variadas profissões. O que deveria ter sido dito é que os serviços da Câmara poderiam ter alertado para uma ou outra situação e não o fizeram”.
O antigo autarca recordou que, nas infrações que lhe são imputadas, “durante anos, ninguém reparou nelas, até o próprio Tribunal de Contas, que fez várias auditorias, nunca chamou a atenção para nada”. Já Carlos Ávila, o sucessor de Francisco Álvares na autarquia da Povoação, eleito pelo PS, que começou por ser condenado, mas em recurso foi absolvido de qualquer irregularidade financeira, afirmou-se “satisfeito” com a decisão. Sobre os comentários do juiz conselheiro, Carlos Ávila declarou: “Que quer que diga? Quando um juiz quer substituir-se à vontade popular, acho que está tudo dito...” O juiz que fez queixa da PGR João Aveiro Pereira é o mesmo juiz que, tal como o DN noticiou em 2014, fez uma participação disciplinar da atual procuradora-geral da República, Joana MarquesVidal, no âmbito do mesmo processo. Em causa estava o trabalho da magistrada que na altura era procuradora do Ministério Público na secção do Tribunal de Contas dos Açores. O juiz conselheiro descreveu, desta forma, o trabalho de Joana Marques Vidal enquanto procuradora do MP no Tribunal de Contas dos Açores: “Lentidão inadmissível”, “expediente dilatório”, trabalhar para a estatística, “aparente desleixo processual” e processos com quase dois anos parados. O caso está ainda no Conselho Superior do Ministério Público para apreciação.