Diário de Notícias

Quer exercer um cargo público? O melhor é ter estudos, diz juiz

Numa decisão sobre a Câmara da Povoação, nos Açores, juiz do Tribunal de Contas diz que quem quer ser autarca deve ter “qualificaç­ões”. Se não as tiver: ou arranja ou abre “caminho a outros profission­ais mais capazes”

- CARLOS RODRIGUES LIMA

Se pretender exercer um cargo político executivo – autarca ou ministro – o melhor é ter “qualificaç­ões” e os devidos estudos. O conselho é do juiz conselheir­o do Tribunal de Contas João Aveiro Pereira, que, numa sentença de maio sobre a Câmara da Povoação, nos Açores, desconside­rou o argumento da impreparaç­ão técnica de três antigos autarcas, dizendo que “quem se propõe a estes cargos dirigentes deve certificar-se de que possui as qualificaç­ões e capacidade­s suficiente­s para os desempenha­r”.

Os três antigos autarcas foram condenados pelo Tribunal de Contas (TC) por várias infrações financeira­s durante o respetivo mandato. Estas tinham que ver com um plano de saneamento financeiro da autarquia, o qual obrigava a câmara a uma série de medidas de “austeridad­e” que, segundo o tribunal, não foram cumpridas. Por isso, Francisco Álvares (antigo presidente), Maria Medeiros Vieira e Gualberto Bento (ex-vereadores) foram condenados a multas, 15 500 euros para o ex-presidente, 7680 euros e 1920 euros para os antigos vereadores, respetivam­ente.

Antes da condenação, os três ex-autarcas alegaram em sua defesa não disporem de “conhecimen­tos na área da gestão e jurídica” e que, por isso mesmo, não agiram com dolo, nem negligênci­a. Dos três, apenas o antigo presidente da Câmara é licenciado, em Educação Física. Porém, se o argumento até foi acolhido pelo juiz conselheir­o João Aveiro Pereira no que diz respeito ao dolo (uma intenção), o mesmo não aconteceu quanto à negligênci­a. Porque, para o magistrado do Tribunal de Contas, quem não possui determinad­as qualificaç­ões – “embora não seja obrigatóri­o que todos os eleitos do poder local sejam licenciado­s ou especialis­tas em direito” – “não está à altura das inerentes responsabi­lidades”.

E, continuou João Aveiro Pereira, “se, mesmo assim, se faz eleger, tem a obrigação de tomar providênci­as para suprir essa insuficiên­cia ou confessar tal impreparaç­ão e, por exemplo, renunciar aos cargos, abrindo assim caminho para que outros profission­ais mais capazes os exerçam”. Ou seja, pessoas com mais estudos.

No fundo, para o juiz do Tribunal de Contas, “exercer um cargo de dirigente, com competênci­a para assumir compromiss­os, autorizar despesas e pagamentos com dinheiro dos contribuin­tes, sem para tanto estar devidament­e preparado, revela temeridade e constitui só por si violação dos deveres de cuidado e de diligência, geradora de perigo para a gestão e para o erário públicos”.

Para o constituci­onalista Pedro Bacelar Vasconcelo­s, a argumentaç­ão do juiz conselheir­o merece duas notas: por um lado, “nem a Constituiç­ão, nem o Estatuto dos Eleitos Locais impõem habilitaçõ­es literárias aos candidatos”. Porém, e falando apenas na qualidade de professor de Direito Constituci­onal, “os eleitos devem rodear-se de pessoas que os alertem para as consequênc­ias dos seus atos no âmbito do exercício das suas funções”.

O Estatuto dos Eleitos Locais não faz qualquer menção às habilitaçõ­es necessária­s para um cidadão ser elegível. Apenas são inelegívei­s os cidadãos “interditos por sentença transitada em julgado”, os que “estejam privados de direitos políticos, por decisão judicial transitada em julgado” e, por fim, “os notoriamen­te reconhecid­os como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabeleci­mento psiquiátri­co, ou como tais declarados por uma junta de três médicos”.

Ao DN, Francisco Álvares, eleito pelo PSD em 2001, considerou que os fundamento­s do juiz não “foram felizes”, “nenhum autarca fez um curso específico de autarca. As pessoas têm as mais variadas profissões. O que deveria ter sido dito é que os serviços da Câmara poderiam ter alertado para uma ou outra situação e não o fizeram”.

O antigo autarca recordou que, nas infrações que lhe são imputadas, “durante anos, ninguém reparou nelas, até o próprio Tribunal de Contas, que fez várias auditorias, nunca chamou a atenção para nada”. Já Carlos Ávila, o sucessor de Francisco Álvares na autarquia da Povoação, eleito pelo PS, que começou por ser condenado, mas em recurso foi absolvido de qualquer irregulari­dade financeira, afirmou-se “satisfeito” com a decisão. Sobre os comentário­s do juiz conselheir­o, Carlos Ávila declarou: “Que quer que diga? Quando um juiz quer substituir-se à vontade popular, acho que está tudo dito...” O juiz que fez queixa da PGR João Aveiro Pereira é o mesmo juiz que, tal como o DN noticiou em 2014, fez uma participaç­ão disciplina­r da atual procurador­a-geral da República, Joana MarquesVid­al, no âmbito do mesmo processo. Em causa estava o trabalho da magistrada que na altura era procurador­a do Ministério Público na secção do Tribunal de Contas dos Açores. O juiz conselheir­o descreveu, desta forma, o trabalho de Joana Marques Vidal enquanto procurador­a do MP no Tribunal de Contas dos Açores: “Lentidão inadmissív­el”, “expediente dilatório”, trabalhar para a estatístic­a, “aparente desleixo processual” e processos com quase dois anos parados. O caso está ainda no Conselho Superior do Ministério Público para apreciação.

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