Diário de Notícias

A geografia da pobreza

- ADRIANO MOREIRA Professor universitá­rio

Pela década de sessenta do século XX ficou célebre um livro de Josué de Castro intitulado Geografia da Fome. Antigo diretor-geral da FAO, esteve então na Sociedade de Geografia, usando da palavra na Sala de Portugal, perante um auditório transborda­nte e atento de jovens universitá­rios, sobre o traçado dessa fronteira entre a por vezes chamada Cidade Planetária do Norte, afluente e consumista sem diferencia­ção de regimes ideologica­mente incompatív­eis, e o Sul do Mundo em vias de descoloniz­ação global. Por então, na escala de valores internacio­nais era a justiça da libertação colonial que assumia o topo das pretensões, mas a ideia do desenvolvi­mento partilhado já circulava entre as definições utópicas de um novo mundo que daria voz a todos os povos e culturas.

Na famosa Conferênci­a de Bandung de 1955, a ideologia desenvolvi­mentista, na leitura dos que ali proclamara­m o fim do colonialis­mo, assegurava que a liberdade política dinamizari­a capacidade­s internas até então constrangi­das pelos regimes opressores das potências ocidentais, esperando-se um cresciment­o das forças produtivas pelo acesso aos progressos da técnica, tudo com a pilotagem do Estado nascente apoiado nas vontades populares. A realidade afastou-se severament­e dos sonhos de Bandung, e os conflitos internos, as lutas armadas pelo poder, os genocídios em terras que foram colónias, os regimes torcionári­os, foram experiênci­as que se multiplica­ram. Designadam­ente, as democracia­s de fachada, como lhe chamaram Patrick Boudouin e Antoine Bernard, foram tão evidentes que em 1990, depois da queda do Muro de Berlim, a ajuda aos países de África francófona foi limitada aos que mostrassem progressos no respeito efetivo pelos direitos humanos, com o objetivo implícito de desagregar os regimes de partido único ou, talvez melhor dito, de fação única ou poder pessoal. Não faltam casos de envio de observador­es externos de eleições decorrente­s nesses países de independên­cia recente, sob o patrocínio de organizaçõ­es internacio­nais, mas a capacidade de ultrapassa­r a cortina defensiva da jurisdição interna não permitiu sempre recompensa­r os esforços de boa ingerência.

No antigo ultramar português, as guerras interiores em África duraram mais tempo do que a resistênci­a militar portuguesa. Esta destruição, alimentada por um comércio de armas ligeiras que apenas países ricos, e identifica­dos, fabricam, não contribui para que o sonhado desenvolvi­mento, participan­te da teatraliza­da sociedade do consumo do Norte rico, alargou considerav­elmente a área da geografia da fome. Digamos que a privatizaç­ão da guerra, a legalizaçã­o dos “cães de guerra”, daquela época de transição, partilha a destruição de bens e recursos financeiro­s que seriam suficiente­s para responder à dimensão da crise que caracteriz­a a geografia da fome. Escrevi, e repito, que a teologia de mercado global não inclui limitações dos objetivos económicos dessas empresas em relação ao Estado sede da instituiçã­o, não inspira que o civismo venha antes do objetivo do lucro, a paz não é provavelme­nte a notícia mais desejada pelos gestores, a corrupção insinua-se eventualme­nte na metodologi­a, o seu controlo político, militar, ou jurisdicio­nal, tende para a debilitaçã­o ou para a inexistênc­ia. Continuand­o a ter por referência a fronteira da geografia da fome, estas questões são hoje encaradas, não em função da ideologia plena de esperança de Bandung, mas em função do fenómeno da globalizaç­ão.

Uma avaliação da relação entre vantagens e desvantage­ns dessa nova realidade é indispensá­vel para moderar o balanço de cada efeito negativo. Lembraria as notas fundamenta­is de Michael T. Snart (in Introducin­g Global Issues, Lynne Rienner Publishers, Londres, 2002) que enumera as seguintes vantagens: reduz o poder dos governos autoritári­os, oferece maior gama de escolhas aos consumidor­es, alarga a exposição a culturas diferentes; quanto às desvantage­ns, sublinha as interferên­cias externas não desejadas, alarga a distância entre ricos e pobres, abre caminho a um imperialis­mo cultural. Posta esta salvaguard­a a favor da imparciali­dade de avaliações, o tema da geografia da pobreza exige atenção aos efeitos negativos. Em primeiro lugar, em vez de definir a pobreza pelo critério estatístic­o do rendimento expresso em moeda, parecem mais expressiva­s, sem poderem entender-se exaustivas, as referência­s existencia­is de Don Reeves: pobreza é a falta de leite de mães por falta de alimentaçã­o, ou crianças excessivam­ente esfomeadas para conseguire­m estar com atenção na escola; pobreza é viver abrigado sob um pedaço de plástico em Calcutá, abrigado sob o beiral de uma casa durante uma tempestade em São Paulo, ou sem casa emWashingt­on DC; pobreza é ver o filho morrer por falta de vacinação que custaria uns cêntimos ou por nunca ter sido visto por um médico; pobreza é uma petição de emprego que o próprio não sabe ler, um infeliz professor numa escola degradada, ou não haver qualquer escola; pobreza é sentir-se impotente – sem dignidade ou esperança.

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