A geografia da pobreza
Pela década de sessenta do século XX ficou célebre um livro de Josué de Castro intitulado Geografia da Fome. Antigo diretor-geral da FAO, esteve então na Sociedade de Geografia, usando da palavra na Sala de Portugal, perante um auditório transbordante e atento de jovens universitários, sobre o traçado dessa fronteira entre a por vezes chamada Cidade Planetária do Norte, afluente e consumista sem diferenciação de regimes ideologicamente incompatíveis, e o Sul do Mundo em vias de descolonização global. Por então, na escala de valores internacionais era a justiça da libertação colonial que assumia o topo das pretensões, mas a ideia do desenvolvimento partilhado já circulava entre as definições utópicas de um novo mundo que daria voz a todos os povos e culturas.
Na famosa Conferência de Bandung de 1955, a ideologia desenvolvimentista, na leitura dos que ali proclamaram o fim do colonialismo, assegurava que a liberdade política dinamizaria capacidades internas até então constrangidas pelos regimes opressores das potências ocidentais, esperando-se um crescimento das forças produtivas pelo acesso aos progressos da técnica, tudo com a pilotagem do Estado nascente apoiado nas vontades populares. A realidade afastou-se severamente dos sonhos de Bandung, e os conflitos internos, as lutas armadas pelo poder, os genocídios em terras que foram colónias, os regimes torcionários, foram experiências que se multiplicaram. Designadamente, as democracias de fachada, como lhe chamaram Patrick Boudouin e Antoine Bernard, foram tão evidentes que em 1990, depois da queda do Muro de Berlim, a ajuda aos países de África francófona foi limitada aos que mostrassem progressos no respeito efetivo pelos direitos humanos, com o objetivo implícito de desagregar os regimes de partido único ou, talvez melhor dito, de fação única ou poder pessoal. Não faltam casos de envio de observadores externos de eleições decorrentes nesses países de independência recente, sob o patrocínio de organizações internacionais, mas a capacidade de ultrapassar a cortina defensiva da jurisdição interna não permitiu sempre recompensar os esforços de boa ingerência.
No antigo ultramar português, as guerras interiores em África duraram mais tempo do que a resistência militar portuguesa. Esta destruição, alimentada por um comércio de armas ligeiras que apenas países ricos, e identificados, fabricam, não contribui para que o sonhado desenvolvimento, participante da teatralizada sociedade do consumo do Norte rico, alargou consideravelmente a área da geografia da fome. Digamos que a privatização da guerra, a legalização dos “cães de guerra”, daquela época de transição, partilha a destruição de bens e recursos financeiros que seriam suficientes para responder à dimensão da crise que caracteriza a geografia da fome. Escrevi, e repito, que a teologia de mercado global não inclui limitações dos objetivos económicos dessas empresas em relação ao Estado sede da instituição, não inspira que o civismo venha antes do objetivo do lucro, a paz não é provavelmente a notícia mais desejada pelos gestores, a corrupção insinua-se eventualmente na metodologia, o seu controlo político, militar, ou jurisdicional, tende para a debilitação ou para a inexistência. Continuando a ter por referência a fronteira da geografia da fome, estas questões são hoje encaradas, não em função da ideologia plena de esperança de Bandung, mas em função do fenómeno da globalização.
Uma avaliação da relação entre vantagens e desvantagens dessa nova realidade é indispensável para moderar o balanço de cada efeito negativo. Lembraria as notas fundamentais de Michael T. Snart (in Introducing Global Issues, Lynne Rienner Publishers, Londres, 2002) que enumera as seguintes vantagens: reduz o poder dos governos autoritários, oferece maior gama de escolhas aos consumidores, alarga a exposição a culturas diferentes; quanto às desvantagens, sublinha as interferências externas não desejadas, alarga a distância entre ricos e pobres, abre caminho a um imperialismo cultural. Posta esta salvaguarda a favor da imparcialidade de avaliações, o tema da geografia da pobreza exige atenção aos efeitos negativos. Em primeiro lugar, em vez de definir a pobreza pelo critério estatístico do rendimento expresso em moeda, parecem mais expressivas, sem poderem entender-se exaustivas, as referências existenciais de Don Reeves: pobreza é a falta de leite de mães por falta de alimentação, ou crianças excessivamente esfomeadas para conseguirem estar com atenção na escola; pobreza é viver abrigado sob um pedaço de plástico em Calcutá, abrigado sob o beiral de uma casa durante uma tempestade em São Paulo, ou sem casa emWashington DC; pobreza é ver o filho morrer por falta de vacinação que custaria uns cêntimos ou por nunca ter sido visto por um médico; pobreza é uma petição de emprego que o próprio não sabe ler, um infeliz professor numa escola degradada, ou não haver qualquer escola; pobreza é sentir-se impotente – sem dignidade ou esperança.