Diário de Notícias

A cultura do superclien­te no paraíso do consumo

- ANA RITA GUERRA Jornalista

Pouco depois de chegar a Los Angeles, tropecei num trabalho de surpresa que exigia um tripé para a minha câmara e fui a correr à loja de eletrónica e imagem mais próxima. Há muitas, às vezes com nomes parecidos e sempre cheias de promoções. A glória de viver numa cidade onde toda a gente tem um pé no entretenim­ento é que há abundância de opções. O azar de viver numa das cidades mais caras dos Estados Unidos é que as opções são pouco económicas.

“Porque é que não aderi ao Amazon Prime”, vociferei entredente­s, enquanto virava etiquetas à procura de preços só com dois dígitos. Sem Prime, teria de esperar alguns dias pela entrega e o trabalho não poderia ser feito. Comecei a perguntar a conhecidos e foi aí que se abriu perante mim a realidade mágica do retalho norte-americano. “Qual é o problema?”, diziam-me. “Vais à loja X comprar, usas durante as semanas que preci- sas e depois devolves. É o que toda a gente faz.”

Acabei por descobrir uma loja com preços mais baixos e por isso não recorri ao esquema universal: comprar, usar, devolver. É tão sistemátic­o que não parece incomodar ninguém, incluindo os retalhista­s que todos os dias recebem de volta milhares de artigos já usados.

Parecia-me estapafúrd­io que devolver fosse tão fácil quanto comprar, até começar a fazê-lo. A maioria dos retalhista­s devolve o valor em numerário ou no cartão usado na transação, sem fazer perguntas nem tentar convencer o cliente a ficar com o produto. Mais surpreende­nte ainda: em muitos casos, aceitam a devolução sem recibo, desde que a caixa (mesmo danificada) tenha a etiqueta do preço com o nome da loja, ou seja um produto exclusivo da marca. Nesse caso, a loja dá um voucher.

O que me deixou de queixo caído foi perceber que os prazos de devolução são flexíveis, embora a lei só obrigue a 30 dias quando não há política específica na loja. Assisti, com incredulid­ade e vergonha alheia, a um homem a devolver um fato formal no Macy’s que fora comprado há dois anos. “Dois anos!”, gritei dentro da minha cabeça a olhar para aquilo. Sem recibo e visivelmen­te usado. O cliente tinha cartão de crédito da cadeia de lojas de departamen­to e disse à funcionári­a que mal tinha vestido o fato. Nem ela acreditou nisso, lançando um olhar esgazeado à colega de caixa. Mas aceitou e devolveu o preço integral, cerca de 150 dólares.

Não podia crer que isto fizesse sentido, mas aprendi que é a beleza de viver na ordem mundial do consumo. O segredo de uma sociedade onde a prioridade é passar a banda magnética no terminal de pagamento. Os norte-americanos são incentivad­os a gastar tudo o que ganham, e depois mais – usando múltiplos cartões de crédito, essenciais para se construir um bom histórico (credit score). Este histórico de crédito é usado, por exemplo, quando se tenta arrendar uma casa, comprar um iPhone subsidiado ou fazer lease de um carro. Se a pessoa tem um bom histórico, paga juros mais baixos e terá melhores condições.

Vi em mim o efeito disto: em vez de pensar muito se devo ou não comprar aquele spa de pés em promoção, passei a comprar com a premissa de poder devolver sem problemas. Para que o consumidor volte uma e outra vez àquela marca, a experiênci­a de devolução é facilitada. Das vezes que me dificultar­am o processo – por exemplo, por já estar bastante fora do prazo de devolução – consegui sempre chegar a um acordo. Muitas lojas têm caixas só para isso.

O que é que fazem aos itens usados e devolvidos, perguntei-me quando descobri este sistema. A resposta foi dada quase em simultâneo: basta navegar um pouco por lojas como Ross, Marshalls ou Bed, Bath & Beyond para encontrar secções com descontos. Estou a falar de menos 40% ou 50%, às vezes mais, conforme o estado do produto. A loja volta a vender o que é devolvido e mantém o incentivo às compras por impulso. A verdade é que, mesmo quando não ficam satisfeito­s com algo, muitos consumidor­es não voltam para ir devolver – e isso compensa.

As marcas mais caras não dão esta facilidade toda. Se tentar comprar um vestido de 600 dólares na BCBGMaxazr­ia, terei de manter intacta a etiqueta de fora que garante o direito à devolução. No entanto, promove-se um ambiente que encoraja a comprar primeiro e ver se é bom depois. O mesmo para retalhista­s online: a Amazon aparece constantem­ente no topo da satisfação dos consumidor­es com o serviço ao cliente. E ainda para supermerca­dos: é possível devolver comida, mesmo com o pacote aberto, sem precisar que esteja estragado. Uma vez, recambiei à procedênci­a uma couve biológica depois de ver que tinha custado dez dólares. Gosto de vegetais que sabem a alguma coisa, mas não preciso de couves apanhadas sob a luz do luar por criadores de unicórnios.

Para que o consumidor volte uma e outra vez àquela marca, a experiênci­a de devolução é facilitada. Muitas lojas têm caixas só para isso

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