Diário de Notícias

“Deixei de sentir que tinha alguma coisa a provar”

Na primeira entrevista após a medalha, explica como crescer num bairro social a ajudou a evoluir e diz que nunca sentiu o seu valor em causa após Londres. Conta o que lhe trouxe maturidade

- Enviado ao Rio de Janeiro

PEDRO SEQUEIRA Telma Monteiro chegou à Aldeia Olímpica com a medalha na mão. Aliás, não mais a largou desde que bateu a romena Corina Caprioriu na luta pelo bronze. “Pensava que não a ia tirar. Só o fiz para dormir, para não estragar”, ri-se. Percebe-se bem. Esta é a medalha que Telma perseguia há quatro Jogos Olímpicos e foi por isso muito festejada por toda a comitiva. Telma passou a noite fora da aldeia e quando chegou, com a irmã, decorriam entrevista­s a outros atletas. Foi tempo para muitos sorrisos, abraços e conversas animadas, principalm­ente com o judoca Célio Dias, seu amigo de infância. A medalha da atleta de Almada foi passando de mão em mão. Telma está agora mais descontraí­da. É tempo de usufruir do ambiente na Aldeia Olímpica: “Ainda só conheço o prédio de Portugal, a entrada e a saída [risos].” Mais tarde, no regresso a Portugal, vai tatuar a data da conquista da medalha, 08.08.16, por baixo dos anéis olímpicos que tem no antebraço esquerdo. “Sempre o planeei fazer. Agora sim, a tatuagem vai ficar completa.” Mal conquistou a medalha, esteve sempre a festejar. Mas na cerimónia de pódio não conteve as lágrimas. O que lhe passou pela cabeça naquele momento? Não pensei em nada muito específico. Pensei que queria aproveitar o momento ao máximo por tudo o que passei para chegar até ali. De todas as vezes que eu vim aos Jogos Olímpicos, acho que esta não era aquela em que era mais óbvio que eu ia conseguir uma medalha, até por ter vindo de uma operação. Basicament­e estava a tentar assimilar todas as emoções. Foi ainda melhor do que aquilo que eu podia ter pensado. Retirou algumas vantagens por ter crescido num bairro complicado, como é o Bairro Branco do Monte da Caparica, para a sua carreira enquanto judoca? Sem dúvida. Temos de ser mais desenrasca­dos, mais independen­tes. Aprendemos também a lutar por aquilo que queremos, porque nada vem fácil. E aprendemos a ser resiliente­s. Com isso, à medida que o tempo passa começa a ser difícil alguma coisa impedir-nos de chegar mais além. Vamos passando barreira a barreira e lutar por aquilo queremos passa a ser algo muito normal. Sobe ao pódio com a brasileira Rafaela Silva, que cresceu na Cidade de Deus, favela do Rio. Sente que o vosso exemplo pode ser importante para outras crianças que estão, neste momento, a crescer em contextos com mais dificuldad­es sociais? Sim. O exemplo da Rafaela também é muito bom. Quando estamos numa situação dessas, num bairro social, não há muitas perspetiva­s de que as coisas possam ser melhores, mas com o nosso exemplo toda a gente, principalm­ente as crianças, podem compreende­r que existem caminhos diferentes como o desporto, que é uma forma ótima de incluir as pessoas na sociedade. Todas as crianças precisam de ídolos, heróis, momentos de inspiração. E o facto de eu e a Rafaela estarmos no pódio prova que nós não somos definidos pelo local de onde vimos, mas sim pela forma como lutamos e estamos na vida. “Toda a gente precisa de ídolos e heróis”. Quem são os seus? A minha família. São pessoas que lutaram sempre por aquilo que queriam, muito bem-dispostas e otimistas. Depois também vários desportist­as com quem contacto, com histórias muito fortes e que não precisam necessaria­mente de ser famosos para serem uma fonte de inspiração. O facto de estar aqui no Rio acompanhad­a por dois amigos de infância, como são Célio Dias e Sandra Borges [ver texto secundário] também teve influência no seu desempenho? Sim. São pessoas que me conhecem há muito tempo. Também está a minha irmã, o meu treinador do Benfica, outros amigos. Tentei criar à minha volta um grupo que me desse estabilida­de emocional e me fizesse sentir bem. Pessoas de quem teria sempre total apoio, independen­temente do resultado. Isso deu-me estabilida­de, permitiu-me estar aqui mais tranquila para poder competir. Nessa procura pela estabilida­de emocional socorreu-se apenas dos seus amigos e familiares ou também procurou algum tipo de acompanham­ento profission­al? Houve uma fase em que fiz algum trabalho psicológic­o, a meio deste ciclo olímpico. Depois achei que já não fazia mais sentido e concluí. Mas foi um período em que me conheci melhor e aprendi a lidar com certas situações de forma diferente. Às vezes, tudo o que precisamos para lidarmos melhor com os outros é conhecermo-nos a nós próprios e nesse sentido foi muito bom. Mas, para mim, são a família e os amigos o núcleo de tudo. Sentiu que duvidaram do seu valor após a desilusão que foi Londres 2012 [17.º lugar]? Pelo contrário. Senti um grande apoio depois de Londres e consegui ter bons resultados durante todo o ciclo olímpico. Cheguei aqui a sentir que todos iam apoiar-me, mesmo se não trouxesse a medalha. Sei que teria de lidar com algumas críticas, mas sentia que ia ser recebida de forma carinhosa. O que queria era poder retribuir todo esse carinho aos portuguese­s. Talvez no mundo do judo existissem algumas dúvidas por causa da lesão. Mas, fora isso, senti sempre carinho. É preciso ter uma certa raiva interior para ser lutadora de judo ou pode combater-se estando de bem com o mundo? [Risos] Quando somos mais jovens, se calhar precisamos dessa raiva interior, o sentir que estamos a desafiar o mundo como se estivessem todos contra nós. Acho que é normal. Somos jovens, ainda não temos nome e queremos mostrar ao mundo que estamos aqui e queremos fazer a diferença. Mas depois vem a maturidade e com ela uma maneira diferente de ver as coisas. No meu caso deixei de sentir que tinha de provar alguma coisa a alguém, provar que era realmente boa. Passei a lutar porque queria ser a melhor, mas também para me divertir e fazer boas prestações por Portugal. Deixei de ter essa raiva. Não é uma raiva negativa, mas mais uma energia que podemos canalizar para a competição e que nos pode ajudar, quando somos mais jovens, a ganhar combates. Já disse que quer ir a Tóquio em 2020, quando já tiver 34 anos.

 ??  ?? › Telma Alexandra Pinto Monteiro. › 30 anos. › Natural de Almada. › Judoca profission­al no Benfica. › Quatro presenças em Jogos Olímpicos. › Medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Rio 2016 na categoria de -57 kg, cinco vezes campeã da Europa e quatro...
› Telma Alexandra Pinto Monteiro. › 30 anos. › Natural de Almada. › Judoca profission­al no Benfica. › Quatro presenças em Jogos Olímpicos. › Medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Rio 2016 na categoria de -57 kg, cinco vezes campeã da Europa e quatro...

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal