Diário de Notícias

A redenção de Rafaela Silva: da favela à glória olímpica

Vítima de insultos racistas após fracasso de Londres 2012, atleta respondeu com a conquista do primeiro ouro do Brasil no Rio 2016

- RUI MARQUES SIMÕES

O grito de revolta de Rafaela Silva estava encravado na sua garganta há quatro anos e saiu direto ao microfone da TV Globo mal a judoca garantiu a conquista da primeira medalha de ouro do Brasil no Rio 2016 (na categoria -57 kg, a mesma onde Telma Monteiro garantiu o bronze): “O macaco que tinha que estar na jaula hoje é campeão”. Macaca foi apenas um dos insultos racistas que a atleta recebeu, dos adeptos mais primitivos, após fracassar em Londres 2012. Contudo, agora Rafaela completou o percurso de redenção, que a levou da favela carioca Cidade de Deus à glória olímpica.

“Só Deus sabe quanto eu sofri e o que eu fiz pra chegar até aqui”, diz a tatuagem que Rafaela Silva, de 24 anos, tem estampada no bíceps do braço direito, bem juntinho aos anéis olímpicos. No seu caso, essa não é uma frase feita: é a expressão do caminho tortuoso que teve de percorrer, de uma infância pobre na favela celebrizad­a pelo filme homónimo de Fernando Meirelles (Cidade de Deus, 2002) até chegar ao topo do judo mundial.

O título olímpico conquistad­o na segunda-feira (batendo, por waza-ari , a mongol Sumiya Dorjsuren, que afastara Telma Monteiro da luta pelo ouro) foi o ponto mais alto desse caminho, iniciado quando Rafaela tinha 5 anos e os pais a puseram a aprender judo, para direcionar a sua personalid­ade brigona. As aulas – num dos projetos sociais que tentam desviar das ruas os jovens das favelas do Rio de Janeiro (dinamizado pelo ex-selecionad­or brasileiro Geraldo Bernardes e por Flávio Canto, medalhado olímpico em 2004) – mostraram um diamante em bruto. E com o apoio do Judô Comunitári­o Geraldo Bernardes – Instituto Reação, que custeava as despesas de equipament­os e viagens que os pais não conseguiam pagar, a judoca começou a brilhar.

Um título mundial de juniores (2008) e uma medalha de prata nos mundiais de seniores de 2011 elevaram demasiado a fasquia. Rafaela era uma das maiores esperanças canarinhas para os Jogos Olímpicos de Londres 2012 mas tombou com estrondo: foi desqualifi­cada no segundo combate – com a húngara Hedvig Karakas – por ter utilizado uma técnica ilegal. E alguns brasileiro­s reagiram da forma grotesca, nas redes sociais da internet. “Diziam que lugar de macaco era na jaula e não nas Olimpíadas, que eu era vergonha para a minha família”, recordou a judoca, anos depois.

O trauma quase levou Rafaela a fechar-se em casa dos pais – que então já tinham trocado a Cidade de Deus pelo Anil, um bairro de classe média-baixa da zona oeste do Rio – e a ponderar a hipótese de abandonar os tatamis . “Pensei em largar o judo depois da minha derrota em Londres. Comecei a fazer um trabalho com a minha psicóloga e ela não me deixou fazê-lo”, explicou. Afinal, havia espaço e tempo para a redenção – e aconteceu em casa, em pleno Rio de Janeiro. Foi lá que Rafaela Silva conquistou o título mundial, em 2013. E foi ali, na Arena Carioca 2, a escassos quilómetro­s da Cidade de Deus, que alcançou o ouro olímpico – o primeiro do Brasil nos Jogos que acolhe. Apesar da vasta tradição na modalidade, nunca um judoca brasileiro tinha conseguido juntar título mundial e olímpico.

“O macaco que tinha de estar na jaula em Londres é campeã olímpica em casa. Esta medalha é para todas aquelas pessoas que me criticaram, que falaram que eu era vergonha para a minha família e que não tinha capacidade para estar nos Jogos Olímpicos”, vincou a atleta, após subir ao pódio. O judo marcou-lhe a vida (“sem ele não sei onde estaria a agora”) mas, para Rafaela, o que importa é a mensagem de redenção: “Mostrei aqui que uma pessoa saída da favela pode tornar-se campeã. A lição que fica para as crianças é que, se têm um sonho, batalhem. Assim, podem alcançá-lo. Pode demorar. Eu não consegui há quatro anos, mas agora alcancei.”

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