Diário de Notícias

“Esta nova geração de escritores não é assim tão extraordin­ária”

Após ter conquistad­o uma legião de leitores para os livros da Tinta da China, a editora alargou a edição ao Brasil. Onde a presença da literatura portuguesa é quase inexistent­e, como era o caso de Sophia ou Agustina

- JOÃO CÉU E SILVA

O nome da entrevista­da e o da editora Tinta da China confundems­e. Praticamen­te são uma única imagem na cabeça do clube de fãs leitores que adoram todos os livros, bem como a revista Granta, que Bárbara Bulhosa publica. Uma editora independen­te que consegue manter-se à tona entre o pouco espaço comercial que os grandes grupos deixaram no mercado livreiro em Portugal atualmente, que trouxe à luz do dia um punhado de bons autores e ótimos livros.

Na entrevista, diz o que pensa do mundo editorial de uma forma tão sincera que, gravador desligado, acha melhor suavizar algumas declaraçõe­s: “Não quero ser morta pelas outras editoras.” Nada que a deva preocupar, afinal disse umas verdades, aquelas que se forem tidas em conta podem evitar algum do cinzentism­o editorial atual. É comum achar-se que hoje não há editores em Portugal, mas sim marketeers e pessoas que publicam livros. Como é que se sente no meio desta realidade? Eu não sei como é que as outras editoras ou grupos editoriais trabalham, mas na Tinta da China a ideia foi sempre sermos editores. Isso, para mim, não significa pôr uma capa num livro e mandar imprimir. Editar significa escolher os livros, aceitar ou não propostas, trabalhar diretament­e e muito os manuscrito­s com os autores, de forma que cada livro encontre os seus leitores. Há leitores para a Tinta da China? Nós já sabemos que os livros não são para ser lidos por toda a gente. No caso da Tinta da China, fazemos livros para quem gosta de ler e os critérios de qualidade que impusemos a nós próprios são altos. Tanto na revisão editorial como com os autores linha a linha se for preciso, porque as pessoas podem ter muito boas ideias, mas não têm de ser grandes escritores. Os autores, por norma, também não gostam muito que o editor dê opiniões sobre o que escreveram? Não sei, eu nunca tive um problema com um autor português. Muito pelo contrário, das nossas sugestões em cada livro, 90% são aceites pelos autores. Não mudamos nada sem os autores concordare­m, e costumam ficar gratos e reconhecer­em o nosso profission­alismo. O objetivo é cada projeto dar certo. O autor português acata a opinião assim tão facilmente? Sim. Aceitam, porque não fazemos alterações só por fazer. Aliás, só sugerimos, pois a última palavra é sempre do autor. É ele quem assina o livro, a editora deve ficar o mais invisível possível. Acho que só faz sentido continuare­m a existir editoras com todas as tecnologia­s que temos atualmente porque um editor faz a diferença ao discutir o projeto desde o início com o autor, bem como nas várias leituras que vamos fazendo ambos. Portanto, são projetos com muita partilha. Não é anormal em Portugal que muitos editores publiquem livros quase sem os ler? Exatamente. No meu caso, os vários autores que vieram trabalhar connosco sabem que é assim que trabalhamo­s. Se eu fosse autora, sentir-me-ia muito mais segura se soubesse que alguém estava a olhar para o livro antes de ir para a rua. Afinal, no momento em que um livro está fora, quem vai sofrer mais com ele será o autor se as coisas não estiverem bem. Quando assinamos um livro com o logótipo da Tinta da China estamos a compromete­r-nos com aquele livro. Há autores que surpreende­m ao entregarem um livro a 100%? Todos os livros têm, pelo menos, gralhas. Tal como quase todos têm um final falhado, sem força suficiente? Nunca sugeri finais, o que digo é “não acredito muito nesta personagem”, “este final não está bem conseguido” ou “este início poderia estar melhor”. Ou seja, não faço sugestões diretas como alguns editores que dizem “agora esta personagem devia morrer”. Isso cabe ao autor, porque deve sentir-se identifica­do com o que está a escrever. Não concorda que os finais são fracos na maior parte dos livros? Em termos gerais, considero que os livros deveriam ser mais trabalhado­s antes de serem publicados e que os autores deveriam ter mais tempo para os rever e pensar. Um bom livro só o pode ser depois de muito maturado. O computador não veio dar um ar muito pronto ao livro, evitando que os autores o deixem a dormir na gaveta alguns meses? É possível que isso se passe com alguns autores, mas conheço outros que não. Gonçalo M. Tavares publica coisas que escreveu há três anos, a Dulce Maria Cardoso demora muito mais tempo a rever o livro do que a contar a história. O que é um bom romance? Os grandes romances, aqueles que ficaram como os grandes clássicos, são os que têm ideias, muita qualidade e, ao mesmo tempo, emocionam, prendem as pessoas e conseguem interação. Isso é muito difícil. Temos tido desses grandes romances em Portugal nos últimos tempos? Depois de O Retorno [de Dulce Maria Cardoso], que é um livro extraordin­ário, há alguns de que gostei muito, mas considero que esta nova geração de escritores não é assim tão extraordin­ária no campo literário. Porque não leram o suficiente, não praticaram o suficiente ou não deram espessura suficiente às personagen­s? É preciso ver caso a caso, mas estamos distantes daqueles momentos históricos, como foi a nossa geração de 1970, em que há um conjunto de génios a produzir: Oliveira Martins, Eça de Queirós, Antero de Quental... Não é o que neste momento está a acontecer em Portugal. Nem é preciso ir para tão longe, basta o tempo em que havia em simultâneo José Cardoso Pires, Lobo Antunes ou um Saramago, este com ideias muito fortes. Por isso é que Saramago é um autor incontorná­vel do século XX e ganhou o Nobel. Por trás de cada livro de Saramago está sempre uma grande ideia, que conseguiu resolver de forma genial. Ele seduziu os leitores americanos, que é a melhor forma de medir um bom autor. Concorda? Não sei se consigo concordar. Também traduzem o José Rodrigues dos Santos, portanto não estamos a falar de literatura, mas sim de livros. Aquilo que o Rodrigues dos Santos faz não é literatura, são livros eficazes, ou então não venderiam. Não é possível fazer uma comparação entre o José Sarama-

A última palavra é sempre

do autor. É quem assina o livro, a editora deve ficar

o mais invisível possível

go e o Rodrigues dos Santos, por acaso utilizam o mesmo instrument­o. Voltando a esta geração de escritores. À exceção de Gonçalo M. Tavares, que é ele próprio uma geração, porque não conseguem os outros surpreende­r? Há autores que surpreende­m os leitores. O Valter Hugo Mãe surpreende­u muitos leitores, o último romance da Alexandra Lucas Coelho é um livro surpreende­nte. Quando um escritor se assume como escritor e faz da escrita a sua vida, tem de ser tomado muito a sério, e eu faço uma distinção entre escritores e pessoas que publicam livros. Quantas pessoas é que nas belas-artes estão a apresentar obras extraordin­árias? Quais são os músicos extraordin­ários que temos agora? A criação literária é como outra qualquer, só que sempre fomos muito focados na literatura. Ou seja, creio que devíamos relativiza­r um pouco ou estamos a pôr muito peso sobre os autores, o que pode ser injusto. Talvez porque nunca houve um “grupo” tão grande de autores a publicar. Não os torna mais responsáve­is? O que temos neste momento é outra coisa, uma concentraç­ão editorial e, devido à abertura dos hipermerca­dos, está instalada uma máquina de fazer livros que tem muito pouco a ver com literatura. Há que alimentar um público que não lia e que o começou a fazer por causa do sucesso da editora Oficina do Livro e da literatura light, com a Margarida Rebelo Pinto. Uma série de pessoas que não pegavam num livro passaram a ler nessa altura. Os hipermerca­dos são um perigo para a literatura? Neste momento, vendem um terço dos livros em Portugal e o que a maior parte das editoras e grupo editoriais fazem é estar a alimentar esse mercado. Não estamos a falar de literatura, não estamos a produzir mais literatura, apenas a imprimir mais livros. Em Portugal, publicam-se 14 mil livros por ano. Não é um exagero? E houve um retrocesso no número de edições. O que se passa é que o mercado português funciona com essa ilusão de que os livros vão vender muito se estiverem bem colocados. Então, o que se passa é que as editoras estão sempre a receber devoluções! Como os livros têm todos direito a devolução, o que acontece é que se deixo de publicar durante seis meses só vou ter notas de crédito e nenhuma venda. É empurrar com a barriga ou as editoras vão à falência, porque não se vendem assim tantos livros. Com edições de 250 ou 500 livros como agora é prática, há lugar nas grandes superfície­s? Normalment­e, só têm livros em que acreditam como best-sellers e para se estar muito bem representa­do numa grande superfície é necessário subir muito a tiragem. Há editores que fazem isso, eu não. Só estou nos hipermerca­dos com o Ricardo Araújo Pereira, o Gregório Duvivier e poucos mais, porque na maior parte dos livros que publico nem sequer faço tiragens para estarem nos hipermerca­dos bem destacados. De qualquer modo, não considero que vendesse muito mais por isso. Defendo muito a existência das livrarias independen­tes, porque trabalho para essas pessoas que vão preferenci­almente às livrarias e que gostam de ler bons livros. A Tinta da China não é na edição um clube um pouco elitista? Sim, claro. Podemos sofrer essa crítica porque é verdade. Não estou a fazer crítica. Não é bem um clube, o que aconteceu foi que ao começar em 2005 não tínhamos autores, nem desafiámos os de outras editoras para publicarem connosco. Fomos agarrar numa geração que ainda não tinha publicado muito, como o Rui Tavares, o João Pedro Jorge, o Pedro Mexia ou o Ricardo Araújo Pereira. Eram pessoas que admirávamo­s imenso, da nossa geração, em que acreditáva­mos para fazer um trabalho conjunto. Como é uma editora que não quer crescer muito em número de autores, para se entrar na Tinta da China há uma série de critérios, e como a editora é a gestora da empresa, quem corre riscos sou eu e não um administra­dor. Não receia errar nas apostas? Claro que sim, e já errei imenso. Se formos ao armazém, está cheio. Quando as coisas correm mal, a responsabi­lidade é minha e não da distribuid­ora, dos livreiros, dos jornalista­s ou dos autores. Fui eu que apostei. Só tenho uma preocupaçã­o: não publicar para os amigos. Qual é o critério que segue? Publico um livro quando acredito que tem leitores ou pertinênci­a política ou social. Um editor é também um agente de divulgação cultural e política e quem disser o contrário não compreende o que faz. Vivemos em democracia e é preciso honrar a profissão. Foi por viver em democracia que publicou o livro Diamantes de Sangue, do angolano Rafael Marques, que lhe deu tantos problemas? Nunca me passou pela cabeça que pudesse ser transforma­da em arguida e ficar com termo de identidade e residência por ter publicado um livro, principalm­ente porque sou filha do 25 de Abril e não sei o que é viver numa ditadura. Felizmente, foi tudo muito rápido, pois a partir do momento em que fui constituíd­a arguida, a opinião pública achou inacreditá­vel e o Ministério Público demorou um mês a arquivar. Conclusão: vivo numa democracia. O livro do Rafael Marques não é um livro de difamação? Não, é uma investigaç­ão rigorosíss­ima sobre um problema muito grave de direitos humanos. O seu relato tem os testemunho­s de centenas de violações de direitos humanos, desde mortes a torturas, e é um livro no qual demorou muito tempo a conseguir a informação correta. Quando li o livro, também vi os documentos que provavam que aquelas pessoas eram donas

Nunca me passou pela cabeça que pudesse ser transforma­da

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Bárbara Bulhosa sentada sobre uma das pilhas de livros da Tinta da China no armazém da editora, fundada em 2005. Confessa que edita um livro quando acredita que terá leitores ou pertinênci­a política ou social
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