Diário de Notícias

UM VENTO DE MARROCOS EM LISBOA

- PEDRO VILELA MARQUES

As cores quentes da sala a lembrar ambientes d’As Mil e Uma Noites, pontuada por flores e almofadas confortáve­is, são reforçadas pelo sorriso franco e os abraços amistosos da nossa anfitriã. Pela descrição poderíamos estar a entrar na casa de uma amiga, mas na realidade chegámos a um restaurant­e – ou melhor, um salão cultural, como nos é apresentad­o –, o único marroquino que sobreviveu ao teste do tempo no Bairro Alto, em Lisboa. A que se deve essa longevidad­e de mais de uma década? “À autenticid­ade, os clientes percebem quando somos verdadeiro­s e não misturamos pratos tradiciona­is com locais”, responde Rabea Esserghini, a mentora de A Flor da Laranja.

A conversa inicia-se sob o espetro dos então acabados de acontecer atentados de Nice e Munique. Muçulmana – acabou de cumprir o jejum do Ramadão há pouco mais de um mês, este ano mais difícil “porque coincidiu com o calor do verão” –, Rabea critica a reação violenta das forças ocidentais aos ataques terrorista­s dos últimos meses. “Nenhuma guerra se ganha com mais guerra. Os países ocidentais deviam tentar perceber o que está na origem destes atos, como vivem estas populações nos seus países, em vez de falarem sempre em enviar mais forças militares para o terreno.” A postura firme e o tom de voz indignado logo se adocicam quando começa a desfiar o novelo a sua vida, que há mais de vinte anos tem em Lisboa o seu palco principal. Cidade que espera se mantenha genuína e não se descaracte­rize “com a avalancha de turistas”.

A história da nossa personagem principal começou há 53 anos em Casablanca, a maior cidade de Marrocos e o seu coração económico, onde fez a formação em hotelaria e turismo. Depois de viver em cidades como Marraquexe e Agadir e ter passado pela gestão de hotéis ligados à Royal Air Maroc, a companhia aérea marroquina, Rabea viajou pelo mundo a promover o seu país. “A ideia era mostrar que Marrocos é muito mais do que praias e sol, é um país com tradição e cultura.” Foi entre viagens e escalas em aeroportos que conheceu o futuro marido, durante muitos anos responsáve­l pelo setor do turismo marroquino em Portugal. Estávamos em plena década de 1980 do século passado.

Já casada, e depois de três anos em Londres, aterrou em Lisboa em 1993 para viver com o marido. E da capital portuguesa fez a sua casa até hoje. Foi já por cá que teve a segunda das suas duas filhas, hoje já com 20 e 24 anos, a mais velha acabada de se licenciar em Ciência Política e a outra ainda a estudar na Sorbonne, em Paris. Em Portugal encontrou uma marca genética que a fez sentir-se entre os seus. “É uma bondade, o bom coração, que são iguais entre portuguese­s e marroquino­s, uma forma de estar que se identifica em qualquer parte do mundo, que faz parte do ADN destes dois povos.”

Mas os primeiros tempos não foram fáceis, tudo porque às quatro línguas que falava lhe faltava uma. “Mesmo com uma bagagem muito interessan­te na área do turismo, não consegui trabalhar quando cheguei porque me faltava falar português. Mesmo falando árabe, francês, inglês e italiano fluentemen­te não conseguia arranjar emprego, o que era lógico, como é que eu podia falar com as pessoas daqui?” Voltou aos estudos e seis meses depois já dominava a nossa língua. “Até na rua pedia sempre para falarem comigo em português e corrigirem os meus erros.”

O esforço deu frutos. Colaborou na preparação de eventos especiais no hotel Atlântico e deu cursos na Escola de Hotelaria do Estoril, na área de relações públicas internacio­nais, ao mesmo tempo que dava formações sobre protocolo a diplomatas acabados de nomear, em especial do mundo árabe. Mas faltava ainda um desafio que nunca tivesse experiment­ado: gerir o seu próprio restaurant­e. “A ideia nem partiu de mim, veio de uns amigos que me desafiaram, diziam que devia criar um espaço com comida e sobre a cultura marroquina, porque em Lisboa não existia nada nessa área, à exceção de dois pequenos espaços que misturavam comida tradiciona­l portuguesa.” O objetivo era dar a conhecer um país “que a maioria dos portuguese­s desconheci­a, apesar de ser um dos mais próximos, logo a seguir à Espanha. Quando cheguei perguntava­m-me se andávamos de camelo nas ruas!”

Em 2004, é inaugurado o restaurant­e A Flor da Laranja, apenas uma parte daquilo que era ideia original de fazer uma casa de Marrocos no Bairro Alto, projeto que chegou a ser entregue na Câmara Municipal de Lisboa. “A casa iria englobar uma biblioteca, uma sala de estar para ter conversas entre muitas culturas e, à parte, uma parte de restauraçã­o para retratar a cultura culinária marroquina.” No final, foi só esta última que viu a luz do dia, o sonho original ficou pelo caminho por falta de dinheiro. “Na altura ainda só tinha autorizaçã­o de residência de dois anos, nenhum banco emprestava dinheiro nessas condições, e apesar de haver investidor­es interessad­os, decidi avançar apenas com o restaurant­e. Como diz um provérbio marroquino, ‘quem anda vestido com a roupa dos outros anda quase nu…’”

Todos os dias, Rabea é ao mesmo tempo a atenciosa anfitriã e a incansável chef na sua verdadeira tenda do deserto em plena Rua da Rosa, num one woman show entre tagines, couscous, cheiro a especiaria­s e chás. A agenda esgotada e as menções em guias internacio­nais são a maior prova do seu sucesso. “No verão nem há descanso. Agora, o regresso a Marrocos faz-se apenas em pequenas visitas duas ou três vezes por ano.” Até porque em Lisboa, “de vez em quando, também vem aquele vento a fazer lembrar a minha terra”.

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