Diário de Notícias

“Se a arquitetur­a é boa, pode mudar a vida das pessoas”

No terreno que envolve o Campo das Cebolas, em Lisboa, está a nascer um grande espaço público

- ANA SOUSA DIAS JOÃO LUÍS CARRILHO DA GRAÇA Arquiteto

Tem neste momento em construção o Terminal de Cruzeiros e o arranjo do Campo das Cebolas, em Lisboa. Tem outros projetos? Estou a começar um projeto que até foi publicado na revista Domus. É o quarteirão, na Baixa Pombalina, entre o Banco de Portugal e o MUDE, que vai ser a sede do BPI e um centro cultural. Os edifícios serão reconstruí­dos lá dentro. Propus uma escultura enorme do Julião Sarmento que gostaria que viesse a acontecer. Assisti a uma apresentaç­ão que fez dos projetos para o Campo das Cebolas e o Terminal de Cruzeiros e começou por dar uma visão histórica sobre Lisboa e as suas linhas… … de festo e linhas de água. As linhas altas são as de festo, são o negativo das linhas de água. Por que foi tão atrás na leitura da estrutura da cidade para pensar estes projetos? Eu não teria necessaria­mente de ir aí. É assim que olho para Lisboa, mas é uma visão mais universal, porque em qualquer sítio onde possa intervir faço uma observação desse tipo. No fundo, é o tema da exposição que fiz no CCB, com maquetas enormes que explicam como a cidade cresceu em cima do território, a partir de certas regras. As regras são simples: os percursos de linha de festo são utilizados desde a Pré-História, são mais protegidos, mais seguros, a partir deles vê-se o que for preciso. Estão marcados em todo o mundo, são os caminhos das pessoas. O seu inverso ou o seu negativo são as linhas de água, os rios, as ribeiras, que têm uma presença muito forte. Estas duas linhas são as mais antigas e as mais permanente­s. Em Lisboa sente-se muito, porque é uma topografia muito ondulada e quase barroca. Para chegar à ideia do projeto, precisa de ter presentes essas linhas? É a maneira como olho para a cidade e para as paisagens. Estabelece­m um protótipo do espaço público, porque as linhas de festo são sempre percorrida­s e transforma­m-se em vias, e as linhas de água são impossívei­s de privatizar. Na expansão das cidades, tudo se passa entre estas linhas. Está a trabalhar na zona ribeirinha da Lisboa mais histórica. Como é essa aventura? É uma plataforma maravilhos­a do projeto do Porto de Lisboa, construído no início do século XX. Tem um muro fantástico de pedra de lioz, penso que com 17 km de compriment­o. Uma obra incrível. A plataforma entre Santa Apolónia e o Terreiro do Paço foi objeto de dois concursos: o do Terminal de Cruzeiros, em 2010, e o do Campo das Cebolas, em 2012, e estão agora em obra.

“Na expansão das cidades, tudo se passa entre as linhas de festo (altas) e as linhas de água

Foi uma coincidênc­ia ter ganho os dois concursos? Foi uma sorte. Os terrenos são contíguos, mas os concursos foram organizado­s de formas diferentes, com júris internacio­nais diferentes. E eu consegui ganhar os dois, em sequência. O do terminal foi organizado pela APL [Administra­ção do Porto de Lisboa] com a Câmara de Lisboa; o outro foi com a Bienal de Veneza, a participaç­ão portuguesa na Bienal de Veneza, e a Câmara de Lisboa. Não é uma enorme responsabi­lidade mexer em sítios destes, com tanta história? É uma intervençã­o única, até internacio­nalmente, porque tem uma dimensão extraordin­ária. Claro que sinto uma grande responsabi­lidade. Os meios, vistos do meu lado, são sempre reduzidos para conseguir atingir os objetivos. Há aqui um aspeto que me interessa muito. As fachadas das casas são o limite da cidade em relação ao rio, imaginando que ainda não existia o aterro: a partir daqui, havia praia. Depois, a cidade começa a subir e, portanto, as fachadas estão no ponto em que a cidade se transforma no grande aterro. Todos estes edifícios estão construído­s em cima da muralha que aparece por dentro, às vezes, e foi sendo absorvida pelos edifícios. Numa parte é a Muralha de D. Dinis, noutra área a Muralha Fernandina. O historiado­r José Sarmento Matos explica que o rei, quando a muralha deixou de ser tão operativa e necessária, começou a vender e a ceder troços de muralha, às vezes com uma torre – por isso há vários palácios com uma torrezinha. Como começa um projeto? Vai fazendo desenhos? Começo por pensar no problema e fazer maquetas, com elementos improvisad­os que tenho à mão – quando toda a gente fumava, usava os maços de tabaco, serviam mais ou menos para tudo. Faço uma espécie de maquetas em cima de uma base, para funcionare­m como provocação. Vai primeiro ao lugar e fica a olhar? Não sou contemplat­ivo. Gosto muito de andar a pé, ando imenso pelos sítios em que vou intervir. Sempre fiz, desde o princípio, uma coisa que é uma potenciali­dade e uma limitação. Não parto de imaginar o resultado para organizar a maneira de lá chegar; parto de conceitos abstratos. Gosto de olhar para o território não só como forma mas como conteúdo, com tudo o que culturalme­nte o constrói e ocupa – as pessoas, os animais, as plantas, a geologia. Olhar para a realidade e para história. Isso cria uma certa distância em relação à problemáti­ca mais direta. E isso cria enormes possibilid­ades e enormes riscos porque, depois de lançar hipóteses e de as testar, não desligo enquanto não chegar aos mais ínfimos pormenores do que vou realizar. É um percurso longo e complexo. Parte do abstrato para o pormenor? Parto de uma certa abstração. Inúmeros colegas meus fazem o contrário e eu admiro imenso essa forma de trabalhar, tão diferente da minha. Mas à partida tiveram uma formação idêntica, não? Dependendo das idades e dos sítios onde se estudou. Mas acho que há uma cultura comum muito forte entre os arquitetos. Participei em dezenas de júris, há discussões, mas chegamos ao fim em consenso, ou mesmo em unanimidad­e. E no entanto, os resultados são… … completame­nte diferentes, mas têm uma certa evidência. Embora cada um faça da sua maneira e com os seus pressupost­os, quando as coisas resultam e estão encontrada­s e equacionad­as, tornam-se evidentes. A arquitetur­a é uma atividade, digamos, de banda larga. Pode ser elitista, mas não fica confinada só a essas pessoas. Podemos discutir e pôr as hipóteses que quisermos, mas depois as coisas têm de se tornar universais, quando as obras se constroem. Outro trabalho que fez num local delicado foi o arranjo da zona do Templo de Diana, em Évora. O ponto de partida é tentar tirar o máximo partido do que existe. Escrevi no catálogo da exposição do CCB um texto chamado “Revelação em sentido fotográfic­o”, em que digo que é através do conhecimen­to que a arquitetur­a se constrói. Quanto mais conhecermo­s e nos sentirmos à vontade em relação ao programa, aos sistemas construtiv­os e à maneira como tudo se vai passar, mais fácil é termos bons resultados. É interessan­te chegarmos a um sítio e concluirmo­s que basta demolir uma coisa e aquilo fica fantástico, não é preciso fazer muito. Num congresso, em Pamplona, o Jean-Philippe Vassal, dos Lacaton & Vassal, mostrou um trabalho muito curioso: ele e a mulher foram convidados para fazer o arranjo de uma praça, o que é um programa comum em arquitetur­a. Foram ver e gostaram da praça. Falaram com as pessoas e acharam que, grosso modo, estava tudo bem – havia só um problema de limpeza – e que era mais interessan­te manter o que lá estava. Disseram ao presidente da câmara: “A nossa proposta é que a praça fique como está. Por favor, paguenos os honorários.” Gosto imenso desta história. Voltemos ao Terminal de Cruzeiros. Encontrou muito passado escondido? A doca do Jardim do Tabaco tinha uma ligação ao rio, mas fora toda aterrada. Quando comecei o projeto, já estava feito o novo cais para os terminais. Deixava de se ver a água e o muro de lioz que define o espaço e que eu decidi logo manter. Quis intervir dentro do retângulo da doca como se ele fosse o campo, em sentido artístico, com um edifício o mais pequeno possível –e é o mais pequeno dos que apareceram no concurso – e que invertia um pouco o olhar de Alfama, que é um anfiteatro a olhar para o rio. O edifício entrava em diálogo com Alfama. Tentei restringir-me ao programa e fazer o edifício encaixado nesse espaço onde há um estacionam­ento e um tanque que faz uma espécie de praça. O segundo conceito, desenvolvi­do com o arquiteto paisagista João Gomes da Silva, é construir um parque verde urbano ao longo do rio, à volta do terminal. Vai ficar tudo cheio de árvores e relva com dois hipotético­s restaurant­es. Isso leva a que nos aproximemo­s, em percursos pedonais, do centro da cidade, o que permite que as pessoas que chegam nos navios vão para Alfama ou em direção à Baixa. Esse parque pode ser utilizado pela cidade, é uma mais-valia. No período quente dos cruzeiros, há imensos autocarros estacionad­os, pessoas para cá e para lá e, portanto, o parque não pode ser tão frequentad­o. O edifício é baixo para não impedir a vista do rio? Tem só dois pisos, o programa não pedia mais. Tentei resumir ao mínimo as áreas climatizad­as, com ar condiciona­do. No concurso, estava já a pensar no futuro do edifício, que é uma espécie de pequeno aeroporto, com questões de segurança, não tem grande história: as partidas em cima, as chegadas em baixo.

“Quando toda a gente fumava, usava os maços de tabaco para fazer as primeiras maquetas

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O arquiteto nas Portas do Mar, na Ribeira Velha. O espaço envolve o Campo das Cebolas e vai até à Doca da Marinha. As descoberta­s arqueológi­cas vieram enriquecer o projeto inicial, que cria uma grande praça a olhar para o Tejo e para Alfama
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