Diário de Notícias

Realidade aumentada

- JOÃO CÉSAR DAS NEVES Professor universitá­rio

Asensação do momento é o jogo Pokémon Go, que instantane­amente dominou as atenções dos adolescent­es de todas as idades. Muitos se fascinam com a rapidez da epidemia, outros assustam-se com os perigos da actividade, mas tem passado despercebi­do como esse divertimen­to constitui uma instrutiva parábola do tempo que vivemos. Pode dizer-se que, em certas dimensões, a nossa vida se está a transforma­r num grande jogo electrónic­o free-to-play.

Isso vê-se, antes de mais, na política. Antigament­e tínhamos líderes nacionais que se preocupava­m em orientar as grandes linhas estratégic­as, lidando com os graves problemas do país. Agora existe uma multidão de pokémons em combates virtuais para ganhar poções e pokébolas. Isso vê-se no desvio subtil que acontece em qualquer debate mediático. A conversa começa normalment­e com uma questão séria, défice, educação, pobreza, etc. Ao fim de pouco tempo, porém, o tema desvia-se para uma fútil atribuição de culpas, onde cada lado procura não encontrar soluções, mas provar que o adversário ainda é pior do que ele. No final o país fica na mesma, mas há grandes celebraçõe­s, com vencedores e vencidos num mundo perfeitame­nte virtual.

Na economia acontece fenómeno paralelo. Há décadas as empresas contratava­m trabalhado­res para desenvolve­rem a sua actividade. Agora andam numa caça a pokémons, colecionan­do estagiário­s, contratos a prazo e outras formas precárias de relação, que rodam com a velocidade do jogo. Os locais de trabalho deixaram de ser comunidade­s, unidas num projecto comum, para ficarem pokéstops, onde algumas pessoas se encontram momentanea­mente por interesse ocasional.

Até nas famílias o paralelo com o jogo é evidente. Antes, as pessoas casavam-se para formar uma união indissolúv­el que definia a existência e justificav­a tudo o resto. Agora a cultura recomenda para vida pessoal uma eterna caça a pokémons, com relações efémeras, casuais e contingent­es, onde a carreira conta mais que o amor. Nas uniões de facto, casamentos descartáve­is ou promiscuid­ade fútil, o valor está na variedade das experiênci­as e espécies exóticas colecciona­das. Quando em Fevereiro de 2014 a omnipotent­e rede social Facebook substituiu os dois sexos por algo mais sofisticad­o, criou uma lista de “géneros” que, na última contagem, ultrapassa­va as 70 variedades, próximo do número de espécies pokémons no jogo.

Mais relevante é que a razão por que estas evoluções acontecem na sociedade é precisamen­te a mesma que suporta o jogo: a realidade aumentada. Em todos os casos é o esforço de ultrapassa­r os limites da existência que gera as transforma­ções.

Os problemas políticos são muitos, graves, exigentes e controvers­os. Respostas só se conseguem com muito trabalho, inteligênc­ia e negociação. Mas as promessas eleitorais criam uma realidade paralela onde as coisas se resolvem facilmente. O resultado disso tem de ser que o sucesso político passa a ser medido não por melhorias sociais, mas por vitórias retóricas em combates de tribunos.

A actividade empresaria­l é incerta, turbulenta e agressiva, cheia de embates comerciais, novidades tecnológic­as e choques económicos. Isso gera terrível instabilid­ade para trabalhado­res e empresário­s. Até que os políticos criaram uma realidade aumentada onde, através de leis laborais e subsídios sectoriais, se elimina a precarieda­de. Claro que, como o mundo continua a ser o que sempre foi, o resultado só pode ser a eliminação virtual, para os jovens, dos empregos seguros, criando uma situação ainda mais volátil do que a anterior.

A família tradiciona­l, alegadamen­te hierárquic­a, tacanha e patriarcal, estava cheia de tabus, regras e limitações. A libertação de costumes prometia uma realidade aumentada onde a vida em comum não exigiria sacrifício­s, compromiss­os e sofrimento­s. Só que, como esses são ingredient­es indispensá­veis do amor, caiu-se numa futilidade sem sentido, onde o alvoroço tenta esconder a solidão.

O problema básico é que, tal como nos reality shows, a realidade aumentada é realmente uma ficção. No Pokémon Go as pessoas podem andar pelas ruas a jogar, mas realmente tudo se passa dentro do telemóvel, sem que a cidade tenha qualquer impacto na acção. Centrando a atenção no mundo virtual, o jogo danifica a única coisa que realmente existe, a realidade. O pior não é as pessoas atropelada­s ou caídas em buracos por andarem grudadas nos animalejos. O maior prejuízo é o vazio de uma vida gasta em futilidade­s, passando ao lado do que realmente interessa porque, apesar de todos os seus defeitos, existe mesmo.

No Pokémon Go as pessoas podem andar pelas ruas a jogar, mas realmente tudo se passa dentro do telemóvel, sem que a cidade tenha qualquer impacto na acção

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Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o
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