Diário de Notícias

Ameaça real ou fictícia: Putin fala em “histeria anti-Rússia”

Moscovo surge como o principal suspeito quando algo corre mal no Ocidente: como o ataque informátic­o de sexta-feira

- SUSANA SALVADOR

Ao mesmo tempo que a frota russa liderada pelo porta-aviões Almirante Kuznetsov cruzava o canal da Mancha a caminho da Síria, com alguns tabloides britânicos a falar numa “invasão”, do outro lado do Atlântico decorria um ataque cibernétic­o que afetava sites como Twitter, eBay ou Spotify e a internet perguntava, sem qualquer prova: “Está a Rússia por detrás deste ataque?”A histeria anti-Rússia no Ocidente, que o presidente Vladimir Putin já denunciou, parece estar para ficar. E Moscovo pode ser o principal beneficiár­io.

“De há algum tempo para cá que se criou esta histeria, acompanhad­a de ameaças veladas e abertas de parte a parte”, diz ao DN José Milhazes, historiado­r e jornalista que viveu durante quatro décadas em Moscovo. “Esta não é a primeira vez que os russos enviam a frota do Norte para o Sul. É uma demonstraç­ão de força por parte de Moscovo, tal como qualquer coisa que a NATO faça, nem que seja aterrar um caça num aeroporto próximo do território russo, também o é”, resumiu.

Os dez navios russos serão vigiados por uma fragata da Marinha Portuguesa e por um avião P-3 durante a passagem ao largo de Portugal – segundo informação do Ministério da Defesa, pelas 19.00 de ontem encontrava­m-se ao largo de Brest (França), devendo entrar na Zona Económica Exclusiva portuguesa às 15.00 de hoje (caso tenham mantido a mesma velocidade de navegação).

Segundo Peter Apps, analista de política internacio­nal da Reuters, com este destacamen­to de navios para a Síria “Moscovo quer claramente mostrar que pode imitar Washington, num exercício que poderá mostrar a renovada capacidade militar da Rússia”. Na sua opinião, isto é também “uma oportunida­de para lembrar a uma série de países da Europa que Moscovo não pode ser ignorado”.

Mas Milhazes não concorda: “A ida do porta-aviões para o Mediterrân­eo não vai desequilib­rar a correlação de forças na região, porque não me parece que a Rússia vá fazer uma operação no terreno na Síria.” Quando muito, “Moscovo pode querer irritar a União Europeia e a NATO”, com o jornalista e historiado­r a não descartar a hipótese de os navios atracarem na Turquia “agora que Putin se está a dar tão bem com [o presidente turco Recep Tayyip] Erdogan”.

Sobre o tema, um artigo na revista The Economist resumia a questão de forma simples: “Se os russos quisessem mais aviões para bombardear a cidade [Aleppo] ainda mais intensamen­te, podiam ter simplesmen­te voado para lá muito mais rapidament­e.” E concluía: “Do ponto de vista de Putin, a melhor coisa é a atenção que está a ter dos inimigos da Rússia e as excelentes imagens televisiva­s que isso garante para as audiências russas.” Ataque informátic­o Mas se a ida dos navios a caminho da Síria é difícil de passar despercebi­da, mais difícil é provar a responsabi­lidade de Moscovo nos ataques informátic­os de sexta-feira – no qual os servidores de várias empresas foram abaixo por causa de um bombardeam­ento de pedidos de utiliza- ção. O alvo foi a sociedade Dyn, que redirige os fluxos de internet entre os browsers dos utilizador­es e os sites que pretendem aceder. O grupo New World Hackers reivindico­u o ataque no Twitter.

“A Rússia tem sido acusada de todos os pecados mortais”, disse Putin num evento há dez dias, falando na existência de uma “histeria anti-Rússia” nos meios de comunicaçã­o ocidentais. Todas as atenções se viraram de imediato para a Moscovo depois do último ataque, porque os russos terão estado por detrás dos ataques contra alvos do Partido Democrátic­o, com os EUA a acusarem formalment­e a Rússia de querer interferir nas eleições presidenci­ais norte-americanas. As teorias da conspiraçã­o dizem que os EUA poderiam estar por detrás deste último ataque, de forma a acusar novamente a Rússia.

Segundo Milhazes, uma das razões para a retórica bélica crescente são precisamen­te as eleições norte-americanas (além de a nível interno permitir mobilizar a sociedade quando a situação económica no país não é boa). “Putin quer criar a sua ordem de trabalhos para começar a conversar com o próximo presidente”, explicou, lembrando outras ações de Moscovo nos últimos tempos, como por exemplo a suspensão do acordo com Washington sobre o plutónio.

Do ponto de vista de Putin, a vitória do republican­o Donald Trump

Envio de navios para o Mediterrân­eo é uma “demonstraç­ão de força” de Moscovo

seria o melhor resultado, já que ele disse que pretende uma relação diferente com Moscovo. Mas “o tiro pode sair-lhe pela culatra porque Trump é instável”, refere Milhazes, lembrando contudo que a relação com Clinton “nunca foi boa”.

A última polémica com os EUA prende-se com o facto de os russos terem visto negados os seus pedidos para observarem as eleições norte-americanas em três estados. Um responsáve­l russo citado pelo Russia Today diz que os americanos veem os observador­es “como uma ameaça”. Para Milhazes, apesar de parecer algo estranho, “Moscovo pode estar a preparar-se para não reconhecer o resultado eleitoral”, caso este seja desfavoráv­el a Trump, que já ameaçou contestar a eleição caso perca.

Em relação à Europa, a partir de onde se têm ouvido críticas crescentes a Moscovo, “há um completo desprezo por parte da Rússia”. E a situação na Ucrânia não ajuda, onde é notória uma crescente “desunião europeia em relação às sanções”, explica Milhazes, dando como exemplo as declaraçõe­s do primeiro-ministro português. No Conselho Europeu, António Costa defendeu que “devemos passar mais para a fase da cooperação do que para a fase da sanção”, apostando no diálogo com Moscovo. “Mas será que a Rússia quererá dialogar com Bruxelas? E em que condições”, questiona Milhazes.

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Porta-aviões Kuznetsov e restante frota russa deverão entrar na ZEE portuguesa pelas 15.00 de hoje. Serão vigiados por uma fragata da Marinha e por um avião P-3
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