Ameaça real ou fictícia: Putin fala em “histeria anti-Rússia”
Moscovo surge como o principal suspeito quando algo corre mal no Ocidente: como o ataque informático de sexta-feira
Ao mesmo tempo que a frota russa liderada pelo porta-aviões Almirante Kuznetsov cruzava o canal da Mancha a caminho da Síria, com alguns tabloides britânicos a falar numa “invasão”, do outro lado do Atlântico decorria um ataque cibernético que afetava sites como Twitter, eBay ou Spotify e a internet perguntava, sem qualquer prova: “Está a Rússia por detrás deste ataque?”A histeria anti-Rússia no Ocidente, que o presidente Vladimir Putin já denunciou, parece estar para ficar. E Moscovo pode ser o principal beneficiário.
“De há algum tempo para cá que se criou esta histeria, acompanhada de ameaças veladas e abertas de parte a parte”, diz ao DN José Milhazes, historiador e jornalista que viveu durante quatro décadas em Moscovo. “Esta não é a primeira vez que os russos enviam a frota do Norte para o Sul. É uma demonstração de força por parte de Moscovo, tal como qualquer coisa que a NATO faça, nem que seja aterrar um caça num aeroporto próximo do território russo, também o é”, resumiu.
Os dez navios russos serão vigiados por uma fragata da Marinha Portuguesa e por um avião P-3 durante a passagem ao largo de Portugal – segundo informação do Ministério da Defesa, pelas 19.00 de ontem encontravam-se ao largo de Brest (França), devendo entrar na Zona Económica Exclusiva portuguesa às 15.00 de hoje (caso tenham mantido a mesma velocidade de navegação).
Segundo Peter Apps, analista de política internacional da Reuters, com este destacamento de navios para a Síria “Moscovo quer claramente mostrar que pode imitar Washington, num exercício que poderá mostrar a renovada capacidade militar da Rússia”. Na sua opinião, isto é também “uma oportunidade para lembrar a uma série de países da Europa que Moscovo não pode ser ignorado”.
Mas Milhazes não concorda: “A ida do porta-aviões para o Mediterrâneo não vai desequilibrar a correlação de forças na região, porque não me parece que a Rússia vá fazer uma operação no terreno na Síria.” Quando muito, “Moscovo pode querer irritar a União Europeia e a NATO”, com o jornalista e historiador a não descartar a hipótese de os navios atracarem na Turquia “agora que Putin se está a dar tão bem com [o presidente turco Recep Tayyip] Erdogan”.
Sobre o tema, um artigo na revista The Economist resumia a questão de forma simples: “Se os russos quisessem mais aviões para bombardear a cidade [Aleppo] ainda mais intensamente, podiam ter simplesmente voado para lá muito mais rapidamente.” E concluía: “Do ponto de vista de Putin, a melhor coisa é a atenção que está a ter dos inimigos da Rússia e as excelentes imagens televisivas que isso garante para as audiências russas.” Ataque informático Mas se a ida dos navios a caminho da Síria é difícil de passar despercebida, mais difícil é provar a responsabilidade de Moscovo nos ataques informáticos de sexta-feira – no qual os servidores de várias empresas foram abaixo por causa de um bombardeamento de pedidos de utiliza- ção. O alvo foi a sociedade Dyn, que redirige os fluxos de internet entre os browsers dos utilizadores e os sites que pretendem aceder. O grupo New World Hackers reivindicou o ataque no Twitter.
“A Rússia tem sido acusada de todos os pecados mortais”, disse Putin num evento há dez dias, falando na existência de uma “histeria anti-Rússia” nos meios de comunicação ocidentais. Todas as atenções se viraram de imediato para a Moscovo depois do último ataque, porque os russos terão estado por detrás dos ataques contra alvos do Partido Democrático, com os EUA a acusarem formalmente a Rússia de querer interferir nas eleições presidenciais norte-americanas. As teorias da conspiração dizem que os EUA poderiam estar por detrás deste último ataque, de forma a acusar novamente a Rússia.
Segundo Milhazes, uma das razões para a retórica bélica crescente são precisamente as eleições norte-americanas (além de a nível interno permitir mobilizar a sociedade quando a situação económica no país não é boa). “Putin quer criar a sua ordem de trabalhos para começar a conversar com o próximo presidente”, explicou, lembrando outras ações de Moscovo nos últimos tempos, como por exemplo a suspensão do acordo com Washington sobre o plutónio.
Do ponto de vista de Putin, a vitória do republicano Donald Trump
Envio de navios para o Mediterrâneo é uma “demonstração de força” de Moscovo
seria o melhor resultado, já que ele disse que pretende uma relação diferente com Moscovo. Mas “o tiro pode sair-lhe pela culatra porque Trump é instável”, refere Milhazes, lembrando contudo que a relação com Clinton “nunca foi boa”.
A última polémica com os EUA prende-se com o facto de os russos terem visto negados os seus pedidos para observarem as eleições norte-americanas em três estados. Um responsável russo citado pelo Russia Today diz que os americanos veem os observadores “como uma ameaça”. Para Milhazes, apesar de parecer algo estranho, “Moscovo pode estar a preparar-se para não reconhecer o resultado eleitoral”, caso este seja desfavorável a Trump, que já ameaçou contestar a eleição caso perca.
Em relação à Europa, a partir de onde se têm ouvido críticas crescentes a Moscovo, “há um completo desprezo por parte da Rússia”. E a situação na Ucrânia não ajuda, onde é notória uma crescente “desunião europeia em relação às sanções”, explica Milhazes, dando como exemplo as declarações do primeiro-ministro português. No Conselho Europeu, António Costa defendeu que “devemos passar mais para a fase da cooperação do que para a fase da sanção”, apostando no diálogo com Moscovo. “Mas será que a Rússia quererá dialogar com Bruxelas? E em que condições”, questiona Milhazes.