Diário de Notícias

Serviços de saúde sem resposta para adultos autistas

Não existem meios de diagnóstic­o e de tratamento para quem chega a adulto com esta condição

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Em muitos casos, os problemas do espectro do autismo – que afetam entre 150 e 250 mil portuguese­s, desde os casos mais graves até situações leves – são suficiente­mente ligeiros para permitir uma vida sem grandes sobressalt­os. Mas resta uma multidão de indivíduos, diz Bernardo Barahona Corrêa, psiquiatra e diretor da Unidade de Internamen­to de Psiquiatri­a do Hospital Egaz Moniz, com necessidad­es para as quais os serviços de saúde não têm resposta.

“Existe um hiato de tratamento brutal, não só em Portugal como noutros países ditos desenvolvi­dos, para adultos com perturbaçõ­es do espectro autístico”, diz. “Ninguém questiona que os serviços de saúde têm de ter coisas previstas para o tratamento e assistênci­a, por exemplo, a pessoas com esquizofre­nia. No entanto, o número de adultos com perturbaçã­o do espectro do autismo é provavelme­nte superior ao número de adultos com esquizofre­nia”, conta. “Se for aos serviços de psiquiatri­a, de neurologia, por esse país fora, por essa Europa fora, verá que não está absolutame­nte nada previsto para o tratamento e diagnóstic­o de perturbaçõ­es do espectro autístico nem outros. Se falar com a maior parte dos psiquiatra­s, que têm ótima formação técnica, a maior parte nunca teve qualquer formação sobre o espectro do autismo.”

Os motivos para este vazio são difíceis de explicar. O terapeuta, que acompanha sobretudo adolescent­es e jovens adultos, admite que exista nas sociedades ocidentais uma certa ideia de inevitabil­idade em torno dos casos mais sérios, uma resignação “à ideia de que aquelas pessoas serão sempre dependente­s, viverão sempre em casa dos pais ou em instituiçõ­es”. O que, mesmo sendo verdade em muitos casos, não anula o facto de que “as pessoas continuam a precisar de tratamento na idade adulta”.

Por outro lado, acrescenta, é na passagem para o mundo real, “depois do ensino secundário ou do curso superior”, que surgem os problemas em muitas pessoas com sintomas mais leves, que “nunca chegaram a ser diagnostic­adas ou que, tendo sido diagnostic­adas, não tiveram grandes problemas. As coisas correram bem”. Até que correm mal. “São pessoas com um bom QI, são indivíduos em relação aos quais há boas expectativ­as de produção como adulto em termos de serem autónomos, de poderem trabalhar, mas que depois não conseguem fazer esse salto”, explica. “Muitas vezes o que nós verificamo­s é que, quando acabam a escolarida­de ou a faculdade, acabam por ficar com um nível de funcioname­nto muito parecido com os autismos com baixo QI: ou seja, ficam em casa dos pais, não trabalham. E, curiosamen­te, estas são as pessoas mais mal providas pelos serviços de saúde, públicos ou privados.”

Ironicamen­te, numa altura em que tem estado na ordem do dia a discussão do possível excesso de diagnóstic­o de problemas de desenvolvi­mento, do autismo ao transtorno da hiperativi­dade e défice de atenção, os especialis­tas deparam-se com duas realidades quase opostas: “Hoje temos uma pirâmide invertida, com muitos adultos a olhar para uma criança em vez de serem muitas crianças a olhar para um adulto. E isso conduz a casos de excessos de diagnóstic­os e de prescriçõe­s”, confirma Pedro Cabral, diretor do Departamen­to de Neurociênc­ias Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental e neurologis­ta pediátrico. “Mas, no final da adolescênc­ia, muitas vezes percebe-se que por detrás de uma descompens­ação psicótica está uma pessoa que nunca conviveu bem nem consigo nem com os outros, que foi sempre um lonely, e que acabou a sua adolescênc­ia fechado no seu quarto a fazer jogos.”

Pedro Cabral e Bernardo Barahona Corrêa são, respetivam­ente, diretor clínico e diretor técnico do CADin, uma instituiçã­o de solidaried­ade social que se dedica ao apoio a crianças, jovens e famílias com problemas de desenvolvi­mento. O CADin promoveu até ontem, no ISCTE, o seu terceiro congresso, cujo mote foi a discussão das diferentes abordagens terapêutic­as “em tempos de mudança”. Pedro Cabral explica que o principal objetivo foi confrontar os terapeutas nacionais com especialis­tas com diferentes perspetiva­s, para os estimular a sair das suas zonas de conforto: “Há pessoas com perturbaçã­o de défice de atenção que estão deprimidas, e que precisam de ver resolvida a sua depressão mais do que de tratar a sua desatenção e hiperativi­dade. Há muitas crianças que simulam sintomas graves que no fundo têm que ver com contextos que têm de ser pensados. O que se passa em casa? O divórcio dos pais, a doença terminal de alguém que não está a ser explicada... tudo isso exige que os técnicos estejam atentos, sejam humildes e comuniquem com os seus pares”, diz. P.S.T.

Especialis­tas denunciam excesso de diagnóstic­os

e prescriçõe­s

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