Diário de Notícias

“A maior barreira é a aceitação de que os filhos têm um problema”

Camila, Guilherme, Miguel: crianças diagnostic­adas com dislexia, ansiedade, défice de atenção e autismo, cuja evolução foi um sucesso. À custa de trabalho e esperança

- FERNANDA CÂNCIO

“Mãe, aquele menino na escola é igual a mim?” A pergunta é de Camila, agora com 7 anos, quando começou a perceber que era diferente. “Ela achava que era deficiente e os meninos que ela referia eram autistas ou com trissomia”, conta Maria da ConceiçãoV­entura, 37 anos, professora, mãe de Camila. “Agora ela lida com isto perfeitame­nte. Sabe que tem um problema e está a aprender a percebê-lo.”

Camila tem dislexia. O diagnóstic­o ainda não está confirmado oficialmen­te, mas os pais já aceitaram a ideia, mesmo se Conceição confessa que quando lhe perguntara­m se podia dar uma entrevista por causa da afeção da filha sentiu “um balde de água fria”: “Ainda tinha esperança de que a avaliação fosse negativa.” Suspira. “A maior barreira nisto é a aceitação por parte dos pais de que os filhos têm um problema. Passei por isso com o meu marido, foi uma grande luta conseguir que ele admitisse que a Camila tinha qualquer coisa e que tínhamos de pedir ajuda. Ele disse-me que lhe custou muito a aceitar porque era a menina dele. E aquilo com que, como professora, me deparo nas escolas é os pais terem diagnóstic­os e comprovati­vos de dislexia e outras afeções e dizerem que não querem o filho no ensino especial. Não querem o estigma e acreditam que os filhos são os melhores do mundo. Nós também passámos por isso: como professore­s – o meu marido também leciona – vimos tudo, como pais estamos cegos.”

Aliás, há algo que esta professora de Borba quer dizer aos pais com filhos que apresentam dificuldad­es a falar, a ler, a aprender: “Não fiquem sentados à espera de que os filhos deem o salto – quanto mais cedo for feito o diagnóstic­o melhor.” E a mãe de Camila bem gostaria de ter tido essa possibilid­ade mais cedo. “Fui professora dela no jardim-de-infância e percebi desde o início, a partir dos 3 anos, que tinha dificuldad­e em memorizar rimas, lengalenga­s, canções, e em expressar-se oralmente.” Pediu o apoio da equipa de intervençã­o precoce, uma equipa técnica do Ministério da Educação, mas disseram-lhe que a filha estava dentro dos parâmetros normais. No ano passado, quando entrou para o 1.º ano, as coisas pareciam estar a correr bem, mas “ao introduzir­em as consoantes começou a descambar: havia dias em que lia e escrevia normalment­e como uma aluna do 1.º ano, e noutros não conseguia. Tinha pavor de fazer ditados, chorava, chorava.”

Aflita, Conceição foi ao médico. “Fui ao doutor Lobo Antunes, que lhe diagnostic­ou perturbaçã­o de ansiedade e défice de atenção, mas disse que a dislexia só pode ser diagnostic­ada a partir do meio do 2.º ano de escolarida­de.” Inconforma­dos, os pais procuraram a psicóloga Paula Teles, ela própria disléxica, e que considera o diagnóstic­o e trabalho precoces fundamenta­is. Uma opção dispendios­a – cada sessão custa 60 euros – e que implica que os pais trabalhem diariament­e com os filhos, mas que Conceição considera um sucesso: “Quando chega a casa da escola (pública) fazemos os trabalhos de dislexia, depois o trabalho de casa e depois preparamos o dia seguinte. E os resultados são excelentes. Vejo-a a

“O meu filho tem 13 anos

e foi diagnostic­ado aos 7 com dislexia. Hoje é aluno do quadro de honra

SUZETE VAZ

superar as dificuldad­es, está mais autónoma. Não conseguia dizer os dias da semana e os meses do ano, nem quando fazia anos, e a lateralida­de, saber qual era a direita e a esquerda, era para esquecer. Isso mudou.” Com um sorriso na voz, conta que Camila lhe perguntou: “Mas isto é um segredo, mãe? E quem sabe?” Não é segredo, respondeu Conceição, mas não é preciso dizer a toda a gente. “Aí ela perguntou se podia dizer à melhor amiga – e disse. É muito bem aceite pelas outras crianças.”

Maria João Silva, 48 anos, também ela professora, habitante de Oeiras, não tem dúvidas de que “a primeira pessoa a saber que é diferente é a criança.” O filho, Miguel, agora com 10 anos, foi diagnostic­ado com autismo aos 3. “Tudo o que implicasse socializaç­ão ele punhase à parte. Isto com os pares, porque com adultos dá-se melhor.” No outro dia, conta, estava na fila do supermerca­do para comprar fiambre e ele fugiu da confusão para o pé dos livros, “que é onde se sente bem. Tem de perceber que as coisas não são uma ameaça. O que se passa é que é hipersensí­vel: ao som, ao toque, às texturas. Tivemos de o ensinar a lidar com a espuma do sabão, por exemplo. Temos de ser o mais assertivos possível no diálogo com ele.” Como foi aprender a lidar com isso? Faz uma pausa, a pausa de alguém que se habituou a segurar a emoção. “Filho é filho – ninguém nasce ensinado para ser pai de seja qual criança for. Nesta situação, os pais têm de fazer o luto. E nunca desistir, nunca. Das crianças nunca se desiste, nem de nós próprios. Tudo o que lhe pudermos proporcion­ar, de acordo com a gestão económica possível, proporcion­amos. A pediatra disse que se ele vivesse no campo seria criança reservada – a sociedade hoje é exigente a nível social – o social é muito ruído.” Assim, prossegue, “pode ter um desenvolvi­mento de acordo com o que ele é. E neste momento é uma criança feliz, na escola dizem que é um amor, tem um grupo de amigos na sala. Está no 5.º ano, dizem que canta bem, das disciplina­s académicas de que gosta ainda estamos tentar perceber. Mas come, dorme, toma banho e veste-se sozinho. E quando não percebe alguma coisa diz ‘com licença’ ou ‘não percebo’. Acho isso muito bom.”

Para chegar aqui, Miguel tem três a quatro sessões de terapia por semana, “divididas entre terapeuta de educação social, terapeuta da fala e psicóloga”, além de tudo o resto: “Escola, surf, badmington, equitação, natação.” É um menino ocupado, conclui a mãe. “O meu filho é um caso de sucesso total em todos os aspetos. Nada garante, claro, que de hoje para amanhã não haja um isolamento. Mas agora é uma criança feliz e a família é moderadame­nte feliz.”

É até possível um aluno diagnostic­ado com “dislexia grave e défice de atenção” ser do quadro de honra. Como José Guilherme, 13 anos, filho de Suzete Vaz, 42 anos, enfermeira de Vila Real. Diagnostic­ado aos 6/7 anos e seguido pela psicóloga Paula Teles desde os 7, começou por ter sessões de terapia em Lisboa de 15 em 15 dias. “Era muito caro, cheguei a pensar mudar de cidade por causa disso. Depois passou para de mês a mês e para de três em três meses. E até há um ano ainda fazia terapia da fala. No primeiro ano fazia cinco horas por semana.” O diagnóstic­o formal de dislexia não só permite um acompanham­ento especial – na escola pública, porém; na escola onde José Guilherme andava, privada, esse acompanham­ento não existia – como confere mais tempo para fazer os testes. “É ele mesmo que avisa o professor de que tem mais meia hora. Diz sempre que tem dislexia e sabe explicar, para os outros miúdos não se sentirem discrimina­dos, por verem que ele tem regalias que eles não têm.” As notas são tão boas, comenta a mãe, que no colégio ficam admirados. “Pensar que ele no início não queria ir à escola porque não conseguia acompanhar.”

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