Diário de Notícias

O lado visível de uma guerra mundial permanente

- RICARDO SIMÕES FERREIRA Jornalista

ATerceira Guerra Mundial não é convencion­al, nem atómica, nem nuclear. E está a combater-se neste preciso momento. Os seus soldados não são homens ou mulheres, carne para canhão. São aparelhos eletrónico­s que dão a única coisa que têm, os seus ciclos de processame­nto, em nome de um objetivo que não têm capacidade para compreende­r. O conflito é permanente e, na maior parte do tempo, totalmente invisível – ocorre nas zonas mais profundas da web. Só por vezes uma batalha mais pesada provoca ondas de choque visíveis à superfície. Foi o que aconteceu nesta sextafeira, quando milhões de pessoas não conseguira­m ligar-se ao Spotify, ao Netflix ou ao Twitter nem aceder às páginas de órgãos de informação como o The NewYork Times, a CNN ou a BBC. O ataque atingiu dezenas de sites e foi particular­mente sentido na Costa Leste dos Estados Unidos, mas teve repercussõ­es noutros países, incluindo Portugal (às 20.00 de Lisboa o Twitter estava de novo “em baixo”). O bombardeam­ento foi grande e eficaz. O alvo foram os servidores de uma empresa chamada Dyn, cuja função é mediar as comunicaçõ­es entre os browsers dos utilizador­es e os sites a que estes pretendem aceder, transforma­ndo o IP (o número de identifica­ção de um local na internet) em algo mais legí- vel para as pessoas – por exemplo, de 172.217.22.36 para Google.com. As máquinas que fazem este trabalho foram sujeitas ao um ataque DDoS – sigla para Distribute­d Denial of Service – em que os computador­es são bombardead­os por um enorme número de pedidos de acesso num curto espaço de tempo, de tal forma que deixam de ter capacidade de responder e, simplesmen­te, param. Como a Dyn fornece serviços para várias empresas online de renome mundial, foi o alvo perfeito para fazer o maior número de vítimas. Para conseguir uma operação de tão grande envergadur­a, os hackers utilizam aparelhos espalhados pelo mundo, que “pirateiam” e se tornam assim soldados involuntár­ios da missão. O recrutamen­to é feito de várias formas, mas duas destacam-se: infetam computador­es com malware que se mantém dormente até ser ativado (lembra-se daquele vídeo engraçado que abriu no e-mail vindo não sabe bem de quem? Pode bem, com isso, ter adicionado o seu computador ao contingent­e inimigo…); acedem a aparelhos relativame­nte vulnerávei­s da chamada internet das coisas, como câmaras de videovigil­ância, termostato­s, televisore­s ou frigorífic­os “inteligent­es” – enfim, aparelhos que se ligam à internet e, como tal, enviam pacotes de dados pela rede mundial, pacotes esses que podem ser direcionad­os para alvos específico­s. Mas ainda que de grande visibilida­de, o ataque desta sexta-feira é pouco mais do que a pontinha no topo de um enorme icebergue. São incontávei­s o número de ataques semelhante­s que sofrem os sistemas financeiro­s e bancários mundiais; é impossível saber exatamente quantas palavras-passe roubadas estão a ser vendidas neste momento na dark web; a quase totalidade da espionagem contemporâ­nea, de estado ou industrial, faz-se frente ao ecrã… Tal como acontece nos conflitos armados regionais deste século, estas batalhas no ciberespaç­o até podem ter nações por trás – muitos foram rápidos na sexta-feira a apontar o dedo à Rússia – mas quase qualquer grupo de pessoas pode declarar guerra ao mundo. As armas para levar a cabo um DDoS, o software, estão disponívei­s gratuitame­nte e até vêm com instruções de utilização. As vítimas não são humanas, diretament­e, mas económicas – e, consequent­emente, humanas. E se Vladimir Putin e os seus novos amigos Julian Assange e aWikiLeaks conseguiss­em os seus intentos, após todos os ataques informátic­os que fizeram aos servidores de e-mail de Hillary Clinton e aos computador­es da Fundação Clinton, Donald Trump era eleito presidente dos Estados Unidos. E depois as vítimas seríamos todos nós.

O ataque desta sexta-feira que parou o Twitter ou o Netflix é pouco mais do que a pontinha no topo de um enorme icebergue. E afeta-nos a todos

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