Diário de Notícias

Amor Moderno. O que é o amor? Não perguntem a “O Casal Responde”

“Eu não acordei um dia e tive uma epifania. Não. Lentamente, ao longo de seis a oito anos, fui percebendo que, embora amasse os meus filhos e a minha casa, e esta família que tinha construído cheia de vontade, eu estava errada sobre o amor.”

- Texto: ANN HOOD

Eu era uma das metades da rubrica “O Casal Responde” na revista Glamour. A outra metade era o meu marido. Isso foi há 30 anos, quando as bancas estavam inundadas de revistas. A cada dois ou três meses, ele e eu jantávamos com o nosso editor e líamos umas quantas perguntas dos leitores que chegavam à sala do correio. Eram cartas a sério, claro; não havia e-mail ou internet. Bebíamos Chardonnay, abríamos os envelopes e líamos as cartas em voz alta.

“Querido ‘O Casal Responde’”, começavam as cartas antes de aparecer a pergunta. A coluna pretendia ilustrar as diferenças entre homens e mulheres, explicar porque não pedem os homens indicações quando estão perdidos ou porque têm de controlar o comando da televisão, e porque têm as mulheres de controlar o termóstato e perguntar: “O que estás a pensar agora?”

Nós tínhamos opiniões sobre essas coisas e podíamos escrever sobre aquela vez em que nos perdemos em Espanha: o meu marido recusou-se a pedir indicações a alguém e eu, que não conseguia ler um mapa, fui obrigada a entrar num bar e pedir a alguém que me mostrasse o caminho de volta para o hotel. (“Querido ‘O Casal Responde’: porque não conseguem as mulheres ler mapas?”)

Enquanto escrevo isto agora tudo parece tão estranho e sexista. Será que eu acredito realmente em qualquer uma destas diferenças entre homens e mulheres? Mas as perguntas refletiam, de alguma forma, as nossas próprias forças e fraquezas e nós divertíamo-nos a escolher as perguntas e a encontrar histórias para compartilh­ar com os nossos fãs. Também apreciávam­os os bons jantares em restaurant­es que não podíamos pagar do nosso bolso.

Mas a verdade é que “O Casal Responde” não tinha respostas. O nosso casamento era instável e, pelo menos, um de nós fantasiava sobre divorciar-se e regressar a Ma- nhattan. Eu sempre tinha entrado de cabeça no amor, segura, sem medo, insensata. Aos 15 anos convidei um rapaz para um baile, Sadie Hawkins, e quando ele se despediu de mim com um beijo eu sabia que estava apaixonada.

Este padrão manteve-se durante uma década. Eu achava que entendia o amor e todas as suas complexida­des. Dava, livre e confiante, conselhos sobre o assunto.

Quando me apaixonei por um passageiro num voo de São Francisco para Nova Iorque, quando era assistente de bordo, soube que tinha a minha vida toda planeada. Nós seríamos artistas em Nova Iorque, teríamos filhos com nomes antigos e peculiares e comeríamos comida étnica com as mãos.

Se o amor significa nunca ter de pedir desculpa, como Jenny diz a Oliver em Love Story, então o nosso amor era o ideal. Nós nunca discutíamo­s. Líamos à noite lado a lado. Comprávamo­s ingredient­es exóticos em Chinatown.

Uma tarde, enquanto o observava a limpar e depois a saltear caranguejo­s de casca mole, pensei que não existia, de certeza, um amor melhor do que o nosso. Na noite em que ele salvou o meu gato no parapeito de uma janela do 6.º andar, soube que ele era tudo: chef, amante, herói. Quando esse relacionam­ento terminou, por razões que sou incapaz de resumir numa só frase, não acreditei que não tinha as respostas para os mistérios do coração. Em vez disso, argumentei que um amor tão puro e verdadeiro como aquele tinha falhado porque lhe faltava sentido prático.

O que eu precisava era de um companheir­o sólido e não de um homem que me podia fazer desfalecer apenas sorrindo para mim. “O amor não olha com os olhos mas com a mente”, diz Helena em Sonho de Uma Noite de Verão.

Portanto, o amor deve chegar na forma de um amigo, decidi: alguém com quem me sentisse confortáve­l e em quem confiasse. Alguém com quem pudesse ver filmes antigos num silêncio cúmplice, jogar umas partidas de Boggle e beber um whisky no meio de conversas profundas sobre o estado do romance.

Foi aí que entrou o homem que se tornou meu marido e a outra metade de “O Casal Responde”. Mesmo quando a minha última teoria acabou por se revelar errada, recusei-me a admitir que não sabia tudo sobre o amor. Os opostos atraem-se, decidi. Nada de mais atores, escritores ou pintores. Eu precisava de alguém tradiciona­l, alguém friamente racional. E assim, mais uma vez, avancei no amor com a certeza de que sabia exatamente o que estava a fazer. Afinal de contas, Bertrand Russell tinha avisado: “De todas as formas de cautela, a cautela no amor é talvez a mais fatal para a verdadeira felicidade.”

Estava então nos meus trinta e poucos anos e vivia feliz sozinha na West Village. Ensinava escrita criativa a estudantes universitá­rios, dava pequenas festas e fazia jantares elaborados para mim: molho de pesto espesso, galinha com estragão, esparguete carbonara. Tinha dois gatos que encostavam os seus corpos quentes contra a minha cabeça ou às minhas pernas e ficávamos os três na minha grande cama de latão a ouvir rádio, felizes.

Mas mandei a cautela às urtigas e atirei-me de cabeça para esta última encarnação do amor: o amor pelo meu oposto. Bem, não dei os gatos. Enfiei-os nas suas caixas de transporte e levei-os comigo para aquilo que pensava que seria uma vida estável, de confiança, na Nova Inglaterra.

E foi. Em pouco tempo havia duas perfeitas crianças loiras e uma casa perfeita, vermelha com uma porta azul, construída em 1792. Não era raro ver as pessoas pararem e tirarem fotografia­s da minha casa.

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Os dois gatos acabaram por morrer e foram substituíd­os por um bichon frisé de pelo encaracola­do.

Uma vez, o cão saltou para um lago e teve de ser resgatado. Outra vez, a minha filha enfiou uma bolacha em forma de peixinho no seu pequeno nariz e teve de ser levada de urgência ao pediatra. O meu filho ficou com um balde de plástico preso na cabeça e a pega teve de ser cuidadosam­ente cortada.

Havia muita neve e era preciso vestir muitas vezes os fatos de neve às crianças e calçar-lhes as botas. Construímo­s modelos da Nova Inglaterra colonial, íamos a aulas de natação e a jogos de futebol e, nas noites quentes de verão, sentávamo-nos no quintal a grelhar cachorros-quentes à luz do entardecer. Tudo isto para dizer que havia uma família.

Eu não acordei um dia e tive uma epifania. Não. Lentamente, ao longo de seis a oito anos, fui percebendo que, embora amasse os meus filhos e a minha casa, e esta família que tinha construído cheia de vontade, eu estava errada sobre o amor.

Às vezes os opostos não se atraem. Ou a atração não perdura. Ou atraem-se, mas permanecem opostos em aspetos cruciais – na forma como gostam de passar os seus dias e sobre o que querem fazer com o resto das suas vidas.

Contudo, desta vez foi diferente. Percebi que estava errada. Não por amar de todo o coração. Não por arriscar, por saltar cegamente. Mas errada por pensar que sabia.

O que eu sei agora é que não sei muito. Não sei porque os homens não pedem indicações. Não sei como é que encontramo­s a pessoa certa para amar. Não sei se ele deve ser igual a mim ou ter um tipo diferente de trabalho; ou cozinhar jantares para mim; ou enviar-me rosas; ou gostar de jogar Boggle e fazer puzzles. Simplesmen­te não sei.

Há liberdade, e até mesmo alegria, em não ter as respostas. Pergunto-me se hoje pudesse escrever para uma rubrica “O Casal Responde”, se lhes perguntari­a o que é o amor. Pergunto-me o que eles diriam, mas sei que eles não saberiam realmente. Ninguém sabe. Quando eu tinha 40 anos, estava em Block Island com o meu marido e alguns amigos e todos eles queriam descer em rappel de um penhasco íngreme para uma praia isolada. Eu tenho medo de alturas. E não sou nem um bocadinho desportist­a. Quer dizer, eu nem sequer gosto de jogar bowling.

Mas o meu marido escalava montanhas e fazia regatas, os amigos eram pessoas adoráveis e eu senti-me como uma desmancha-prazeres, sempre com medo de fazer coisas como descer falésias em rappel. Então, apavorada, fi-lo. Lentamente. Agarrei-me à parede daquela escarpa, a tremer, a chorar, com medo de olhar para cima ou para baixo.

Finalmente, cheguei suficiente­mente perto do chão para que o meu marido pudesse pôr os seus braços à volta da minha cintura e baixar-me até ao solo. Assim que senti a areia quente debaixo dos pés, só tive um pensamento: nunca mais vou voltar a fazer alguma coisa do género. E não fiz.

O que eu receava recentemen­te enquanto estava na sala a que chamávamos Sala dos Puzzles, agora vazia, a arrumar prateleira­s e prateleira­s de livros meus em caixas de papelão, era que, como naquele dia, 20 anos antes, quando jurei “nunca mais”, alguma parte do meu coração, do meu cérebro ou da minha alma pudesse sentir-se assim em relação ao amor: nunca mais.

Mas aí fiz uma pausa, com um livro com os cantos das páginas dobrados na mão, e olhei em volta, para a casa onde tinha criado a minha família e amado comprometi­da e empenhadam­ente.

Havia bolas de cotão por todo o lado e mais caixas para encher e, apesar de me sentir tão triste, como se tivesse engolido pedras, sabia que iria voltar a fazer a mesma coisa. Receberia um novo amor de braços abertos. Não sabia nada sobre o amor e era essa exatamente a resposta de que eu precisava.

The Book That Matters Most é o mais recente romance de Ann Hood

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