Ouvir falar
Não sei se estava escrito nas estrelas, até porque sou pouco dado a astarologuices, mas sempre soube que um dia ia ter qualquer coisa na rádio. Não porque ache que o meu tom anasalado tenha propriamente propriedades encantatórias, nem porque ache que falar de impostos ao público possa ter interesse sem ser no outubro orçamental, mas porque prometi a mim mesmo não recusar o convite quando chegasse. E foi assim que comecei agora, na Renascença, terças e quintas, às nove e um quarto da manhã, a comentar a atualidade política, em debate com o Francisco Assis, no programa da Carla Rocha.
Estar na rádio, auscultadores na cabeça, microfone na frente, dá uma sensação boa, estranha, deve soltar uma qualquer adrenalina filha da mistura de poder com transgressão, sem a mira apontada das câmaras nem a eternidade aberta do papel. Aliás, das primeiras ilegalidades que me lembro de cometer foi ouvir a TSF. Começava pelo nome, pirata, era impossível não ouvir uma coisa que era pirata. Depois era ilegal, mas ninguém conseguia explicar por que é que era ilegal. Por que é que uma rádio, que dava notícias, músicas, anúncios e futebol, como as outras, era ilegal? Deve ser já daí que me vem algum libertalismo, e o curso de Direito só piorou: a ideia de leis e licenças para fazer coisas normais era tão estúpida ontem como hoje.
Da TSF, lembro-me sobretudo dos anúncios e do futebol. Os anúncios eram a um champô com amaciador (Pears?), mas a ideia que tenho é que só havia um anúncio, sempre o mesmo. E era o futebol que mais ouvia, à noite, no rádio no chão ao lado da cama, competições europeias num Telefunken Partner International 101 do final dos anos 1970, que ainda existe e desafia a sorte com os novos selvagens cá de casa, selvagens que não sabem que aquilo é um rádio, porque só ouvem rádio no carro, e rádio é sinónimo de RFM, sem apelo nem agravo, porque, ao contrário do que poderíamos julgar, a música Makeup do AGIR é totalmente diferente quando dá na RFM ou noutra estação qualquer, e a Antena 2 só dá “música da missa” e não aguenta um semáforo sem o coro do muda-muda afinar. Mas, voltando atrás, os relatos das noites europeias, os jornalistas sempre a queixarem-se das condições que lhes davam nos estádios, do frio, da chuva, do nevoeiro, mas eu sempre a pensar que o que era bom não era ter escola às oito da manhã, o que era bom era estar ali em Dnipropetrovsk, em Bucareste, em Dortmund, a fazer o relato, a jantar fora, a falar com os jogadores depois do jogo, mesmo com o frio, mesmo com os outros comentadores ao colo, as ligações mal feitas, o ruído na emissão. Depois houve a Radio Energia (NRJ – Nova Rádio Jovem, 92.4, que se lixe a politique que eu só quero o joystick), a Radio Cidade em brasileiro, a RFM, que era para velhos, com a onda do Oceano Pacífico a rebentar mornamente… Houve também nessa mesma altura das rádios piratas dois filmes, além do Good Morning Vietnam, o Radio Days, do Woody Allen, e o Talk Radio, do Oliver Stone. O primeiro, sobre o apogeu da rádio nos anos 1940, mas sobretudo o segundo inspirado no assassínio de Alan Berg, judeu host de um talk show, às mãos do The Order, grupo de supremacistas brancos, anos antes em Denver, no Colorado.
Na era do ler, ver e escrever, ouvir falar é uma espécie de refúgio. Uma das melhores coisas dos meus dias de hoje, e talvez dos dias de hoje, são os podcasts (,) que fazem ter conversas inteligentes ouvindo apenas. Um é o This American Life, um podcast semanal, com uma hora, com várias histórias verdadeiras sobre um tema da vida, da vida real, normalmente contado na primeira pessoa, produzido e apresentado pelo Ira Glass. Do This American Life surgiu o Serial, apresentado por Sarah Koenig, onde vários episódios exploram a fundo um tema mal resolvido (houve duas séries, uma sobre Adnan Syed, acusado e preso pela morte da namorada em 1999, outra sobre Bowe Bergdahl, soldado americano que se afastou do seu pelotão e foi capturado pelos talibãs durante cinco anos). Há também o Radiolab, mais virado para temas tecnológicos e com o melhor som deles todos, e o Reply All, com histórias sobre a internet. Eu sei que assim contado parece pouco, mas é muito. Naqueles inquéritos imbecis de verão, em que se pergunta o livro que levaria para a ilha deserta, sempre esperei ler alguém dizer que levava um rádio. Eu levava podcasts, mas para ouvir durante o dia, porque de noite ia estar a fazer relatos imaginários, para quem me quisesse ouvir falar.