Diário de Notícias

Ouvir falar

- JOÃO TABORDA DA GAMA

Não sei se estava escrito nas estrelas, até porque sou pouco dado a astarologu­ices, mas sempre soube que um dia ia ter qualquer coisa na rádio. Não porque ache que o meu tom anasalado tenha propriamen­te propriedad­es encantatór­ias, nem porque ache que falar de impostos ao público possa ter interesse sem ser no outubro orçamental, mas porque prometi a mim mesmo não recusar o convite quando chegasse. E foi assim que comecei agora, na Renascença, terças e quintas, às nove e um quarto da manhã, a comentar a atualidade política, em debate com o Francisco Assis, no programa da Carla Rocha.

Estar na rádio, auscultado­res na cabeça, microfone na frente, dá uma sensação boa, estranha, deve soltar uma qualquer adrenalina filha da mistura de poder com transgress­ão, sem a mira apontada das câmaras nem a eternidade aberta do papel. Aliás, das primeiras ilegalidad­es que me lembro de cometer foi ouvir a TSF. Começava pelo nome, pirata, era impossível não ouvir uma coisa que era pirata. Depois era ilegal, mas ninguém conseguia explicar por que é que era ilegal. Por que é que uma rádio, que dava notícias, músicas, anúncios e futebol, como as outras, era ilegal? Deve ser já daí que me vem algum libertalis­mo, e o curso de Direito só piorou: a ideia de leis e licenças para fazer coisas normais era tão estúpida ontem como hoje.

Da TSF, lembro-me sobretudo dos anúncios e do futebol. Os anúncios eram a um champô com amaciador (Pears?), mas a ideia que tenho é que só havia um anúncio, sempre o mesmo. E era o futebol que mais ouvia, à noite, no rádio no chão ao lado da cama, competiçõe­s europeias num Telefunken Partner Internatio­nal 101 do final dos anos 1970, que ainda existe e desafia a sorte com os novos selvagens cá de casa, selvagens que não sabem que aquilo é um rádio, porque só ouvem rádio no carro, e rádio é sinónimo de RFM, sem apelo nem agravo, porque, ao contrário do que poderíamos julgar, a música Makeup do AGIR é totalmente diferente quando dá na RFM ou noutra estação qualquer, e a Antena 2 só dá “música da missa” e não aguenta um semáforo sem o coro do muda-muda afinar. Mas, voltando atrás, os relatos das noites europeias, os jornalista­s sempre a queixarem-se das condições que lhes davam nos estádios, do frio, da chuva, do nevoeiro, mas eu sempre a pensar que o que era bom não era ter escola às oito da manhã, o que era bom era estar ali em Dnipropetr­ovsk, em Bucareste, em Dortmund, a fazer o relato, a jantar fora, a falar com os jogadores depois do jogo, mesmo com o frio, mesmo com os outros comentador­es ao colo, as ligações mal feitas, o ruído na emissão. Depois houve a Radio Energia (NRJ – Nova Rádio Jovem, 92.4, que se lixe a politique que eu só quero o joystick), a Radio Cidade em brasileiro, a RFM, que era para velhos, com a onda do Oceano Pacífico a rebentar mornamente… Houve também nessa mesma altura das rádios piratas dois filmes, além do Good Morning Vietnam, o Radio Days, do Woody Allen, e o Talk Radio, do Oliver Stone. O primeiro, sobre o apogeu da rádio nos anos 1940, mas sobretudo o segundo inspirado no assassínio de Alan Berg, judeu host de um talk show, às mãos do The Order, grupo de supremacis­tas brancos, anos antes em Denver, no Colorado.

Na era do ler, ver e escrever, ouvir falar é uma espécie de refúgio. Uma das melhores coisas dos meus dias de hoje, e talvez dos dias de hoje, são os podcasts (,) que fazem ter conversas inteligent­es ouvindo apenas. Um é o This American Life, um podcast semanal, com uma hora, com várias histórias verdadeira­s sobre um tema da vida, da vida real, normalment­e contado na primeira pessoa, produzido e apresentad­o pelo Ira Glass. Do This American Life surgiu o Serial, apresentad­o por Sarah Koenig, onde vários episódios exploram a fundo um tema mal resolvido (houve duas séries, uma sobre Adnan Syed, acusado e preso pela morte da namorada em 1999, outra sobre Bowe Bergdahl, soldado americano que se afastou do seu pelotão e foi capturado pelos talibãs durante cinco anos). Há também o Radiolab, mais virado para temas tecnológic­os e com o melhor som deles todos, e o Reply All, com histórias sobre a internet. Eu sei que assim contado parece pouco, mas é muito. Naqueles inquéritos imbecis de verão, em que se pergunta o livro que levaria para a ilha deserta, sempre esperei ler alguém dizer que levava um rádio. Eu levava podcasts, mas para ouvir durante o dia, porque de noite ia estar a fazer relatos imaginário­s, para quem me quisesse ouvir falar.

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ouvir falar é uma espécie
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Na era do ler, ver e escrever, ouvir falar é uma espécie de refúgio

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