Diário de Notícias

Dia seguinte em Mossul e Aleppo

- BERNARDO PIRES DE LIMA Investigad­or universitá­rio

Éprovável que a reconquist­a de Mossul seja mais demorada do que a de Fallujah, tomada em menos de quatro semanas pelo exército iraquiano ao ISIS no passado mês de junho. Bem mais realista é apontar Mossul como um capítulo militarmen­te decisivo neste ciclo de recuperaçã­o territoria­l no Iraque, no sentido em que o ISIS perderá o controlo do seu quartel-general local e o último reduto estratégic­o ao ficar sem os comandos da segunda cidade do país e da sua maior barragem. Além disto, os terrorista­s do ISIS vão ser obrigados, entre dois outros caminhos, a reforçar o contingent­e na Síria se quiserem proteger Raqqa e outras possessões ao longo do Eufrates. Isto sem pôr em causa o regresso de muitos à jihad na Europa e à dispersão por outros potenciais califados no Norte de África, Ásia Central e Sudeste Asiático. Trabalho não lhes faltará e pode dar-se o caso de a perda de Mossul vir a dificultar ainda mais a monitoriza­ção do fluxo de terrorista­s e do seu financiame­nto, tendo em conta a amplitude do raio de ação que assumirão.

De qualquer forma, do ponto de vista militar, Mossul é um marco na remontada antiterror­ista no Iraque, o que não é o mesmo que dizer que o será de um ângulo político. E aqui é importante fazer um paralelism­o com o que está a acontecer em Aleppo, decisivo para a consolidaç­ão de Assad no cordão territoria­l entre Latáquia, Aleppo e Idlib e na sua estratégia de dizimar (o termo é mesmo este) qualquer vestígio de milícias sunitas. Porque não falo em terrorista­s do ISIS? Porque na hierarquia de prioridade­s do triângulo Assad-Rússia-Irão, minar o ISIS nunca foi tão importante como eliminar a ameaça sunita, ainda para mais quando esta é altamente patrocinad­a pelas duas grandes potências sunitas da região, a Turquia e a Arábia Saudita, ambas hostis a Damasco. Aleppo, tal como Mossul, é um marco militarmen­te relevan- te nas ambições do regime, mas não encerra os mesmos dilemas políticos que a grande cidade do Norte do Iraque. Porquê? Por existir um só vencedor, nesse caso, uma coligação xiita-russa sem rival e com concertaçã­o de interesses afinada. Aleppo é uma tragédia humana sem termo, coloca a ONU entre a espada e a parede, mas no dia seguinte à sua tomada pelas tropas sírias o resultado será evidente para todos: Assad venceu.

Em Mossul não existirá um vencedor, mas vários. Aliás, isto é já evidente na mescla operaciona­l em marcha, com 20/30 mil tropas iraquianas maioritari­amente xiitas, cinco/seis mil

peshmerga, o apoio da aviação americana e, sem ser convidada, da Turquia, tropas especiais americanas, francesas, britânicas e iranianas, e milícias sunitas apoiadas, entre outros, por Ancara. Ou seja, não custa muito perceber a confusão que vai ser o dia seguinte à reconquist­a de Mossul. Se o exército iraquiano for dono e senhor da cidade, isso pode levar o governo de Bagdad a condiciona­r as intenções de partilha de poder com os sunitas numa cidade historicam­ente interétnic­a. E num clima de avanços e domínios xiitas na Síria e no Iraque, a perceção sunita pode ser de recurso imediato às armas e ao clima que marcou a guerra civil na última década.

Mas há mais. A intenção americana é meramente militar, isto é, eliminar o ISIS onde e no que puder, mas sem um plano político estrategic­amente montado para influencia­r o destino do Iraque (e muito menos o da Síria). E com uma administra­ção em final de mandato, resta perceber o que pode fazer a próxima. Se Hillary vencer, Washington dará ainda mais retaguarda aos curdos no terreno com a defesa de uma zona de exclusão aérea limitada a norte, o que implica fortalecê-los politicame­nte e abrir uma ferida profunda com a Turquia. Se Trump ganhar, haverá provavelme­nte robustez de meios aéreos anti-ISIS, embora a coordenaçã­o com a cadeia militar, o Congresso e os aliados regionais seja uma imensa incógnita.

Esta antecipaçã­o de problemas entronca ainda em dois outros fatores. Por um lado, no exercício putinista de poder de Erdogan, cada vez mais incompatív­el com os critérios de pertença à NATO e de um roteiro de adesão à UE. À medida que a agressivid­ade externa for contribuin­do para a sua sustentabi­lidade interna (como acontece com Putin), o fosso com as duas organizaçõ­es será mais evidente. Por outro lado, o grande objetivo da Turquia é controlar duas zonas-tampão no Norte da Síria e do Iraque para travar o avanço curdo. Aliás, mesmo depois de o primeiro-ministro iraquiano ter pedido ao Conselho de Segurança que consideras­se a Turquia uma “força ocupante” no Iraque, a aviação turca avançou em Mossul potenciand­o a base que detém a 30 quilómetro­s da cidade (em Bashiqa), tanto a contragost­o de Bagdad como de Teerão. O futuro deste triângulo é outro dos grandes dilemas do dia seguinte à reconquist­a de Mossul.

Em tese, encurtar o raio de ação dos terrorista­s é positivo em qualquer parte do mundo. Mas para ter eficácia duradoura precisa de acautelar as sucessivas fases do processo. Não basta por isso rejubilar com a formatação de uma coligação de vontades suficiente­mente pragmática para levar a cabo uma missão militar, porque o dia seguinte à tomada de Mossul pode ser tão caótico como o anterior. Se a guerra continua possível, a paz permanece improvável.

Se a guerra continua possível, a paz permanece improvável

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Militares iraquianos
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