“A INTERNET É O MAIOR ESGOTO DA HISTÓRIA”
Historiador inglês, professor em Oxford, critica a diminuição da liberdade de expressão em todo o mundo.
O historiador britânico e analista Timothy Garton Ash acaba de publicar em Portugal a sua mais recente investigação: A liberdade de expressão – Dez princípios para um mundo interligado. Um livro em que continua o debate sobre a dificuldade de o cidadão se emancipar de algoritmos pouco éticos da Google, Facebook, Amazon ou Apple quando quer formar uma opinião isenta sobre os acontecimentos mundiais. Um debate que já mantém num site em que a língua portuguesa é uma das treze usadas. Resume a atualidade marcada pela internet logo à primeira frase do livro: “Agora somos todos vizinhos.” É uma bênção ou uma maldição? As duas. A internet foi um tremendo ganho para a liberdade de expressão e de comunicação em todo o mundo e um momento nunca antes verificado na história do homem. Mas é preciso ponderar que poder comunicar-se através dos smarthphones que estão no bolso de cada um é também um perigo, pois convive-se com ameaças de morte, assédio e discursos alucinados. Como escrevo no livro, a internet é o maior esgoto da história mundial, daí que a questão fundamental que quis analisar seja a de como maximizar a oportunidade e de minimizar os riscos. Existem três mil milhões de internautas. O resto é diferente ou nem conta? Vivemos num mundo que já não aprecia de forma efetiva a liberdade de expressão se não tiver acesso à internet. Os restantes serão diferentes, como aconteceu com as pessoas que não tiveram acesso ao que foi impresso após a revolução de Gutenberg. O mundo atual não está a viver uma espécie de guerra fria ao existir uma fação com e outra sem internet? Não creio que seja comparável à guerra fria no verdadeiro sentido da expressão, porque a luta global é atualmente pelo poder da palavra e tem lugar num mundo em que centenas de milhares de pessoas ficam todos os dias interligadas online. Verifica-se, sem dúvida, uma guerra de ideias e pelo controlo entre a Europa e os Estados Unidos por um lado e a China pelo outro – um país que apresenta um modelo diferente no controlo da internet ao usar o maior aparelho de censura já desenvolvido. A Grande Muralha da firewall chinesa irá cair um dia? O muro de Berlim caiu! A grande firewall chinesa irá cair. Em 2000, Bill Clinton disse que tentar controlar a internet na China era como atirar gelatina contra uma parede. Ao que o Partido Comunista chinês respondeu apenas: “Observem-nos.” E até agora tem conseguido prender a gelatina na parede e controlar a liberdade na internet. Creio, no entanto, que a maratona está no princípio e a vontade de milhões de chineses mais educados e interligados irá alterar o sistema chinês. Levará décadas, mas assistiremos ao momento dramático da queda da grande firewall, tal como vimos a do muro de Berlim. A manutenção de proibições no ciberespaço é uma ameaça noutros países? A ameaça não vem só da China, basta recordarmos as revelações de Edward Snowden. Países como o Brasil, a Índia e a África do Sul serão democracias muito atraídas pelo modelo de controlo de informação que a China promove. A espionagem mundial que Snowden revelou pode coexistir com a internet? O que me preocupa no livro é com o facto de estarmos agora a lidar com superpoderes privados: Google, Facebook, Amazon ou Apple. Que fazem fortunas através de serviços gratuitos enquanto recolhem uma quantidade impressionante de informações sobre os utilizadores e as vendem a anunciantes. É uma nova espécie de vigilância! O que acontece quando as agências de segurança aparecem unidas a esses superpoderes privados faz que aquilo que ambas as partes sabem sobre o cidadão seja em muito além do que, por exemplo, a polícia secreta Stasi extraía com a sua máquina enorme. Considero isso um grande perigo para a liberdade de expressão, que está diretamente ligado à privacidade. Ou seja, a internet cria tanto oportunidades gigantescas como grandes novos perigos. Quando acusa os superpoderes privados não ignora quanto alteram a informação prestada por via do algoritmo. É possível evitar essa manipulação? Ainda estamos apenas a abrir os olhos para essa situação muito perigosa, a do desafio ético do algoritmo. O exemplo clássico é o noticiário fornecido pelo Facebook, por onde cada vez mais jovens têm acesso ao que acontece no mundo. É aí que o algoritmo ganha muita importância, pois presta-se a influenciar fortemente – como se fosse uma câmara de eco – o que interessa a uma comunidade de amigos e o que se torna um perigo para a democracia. O algoritmo também pairou sobre as recentes eleições norte-americanas? É muito curioso que entre os apoiantes de Trump e de Hillary estivesse bem presente essa câmara de eco, afinal não falavam uns com os outros apesar de estarem a cinco metros de distância. Por isso, essa responsabilidade ética deve ser tida muito em conta para a qualidade da democracia. Acredito que deva existir regulação em assuntos sobre a privacidade, pedofilia ou pornografia, mas também é fundamental exigir o compromisso por parte das grandes empresas americanas para com esta questão ética, pois assim teremos mais facilidade em reajustar os seus algoritmos e serem mais transparentes. Defende regras para a liberdade de expressão na internet. Será possível? Eu não sugiro regras mas sim princípios, o que é muito diferente. Porque são importantes para as sociedades civilizadas e permitem alguma harmonia no convívio. Por exemplo, o de não se aceitar a intimidação violenta ou violação de privacidade. Ou seja, nós os cidadãos da internet, necessitamos de ver esclarecida o que é a rede e temos de pressionar os governos, bem como os superpoderes privados e organizações internacionais, para se reunirem em torno de certos princípios. É o que quero, não regras como as da polícia. Pode afirmar-se que a internet tornou o mundo menos democrático? Uma pergunta simples para uma resposta complexa... Primeiro de tudo, temos observado no último meio século uma série de novas democracias, posso mesmo dizer que houve uma onda de democratização que percorreu o mundo – como a Revolução dos Cravos em Portugal. Segundo, estamos agora a experimentar uma onda em sentido contrário, uma reação contra o aumento de liberdade e de liberalização da política e da sociedade e as novas possibilidades que a internet ofereceu. O que Putin ou Erdogan estão a protagonizar é essa contestação às liberdades. Resta ver como é a resposta das pessoas.
“Comunicar através dos smartphones que estão no bolso de cada um é também um perigo, pois convive-se com ameaças de morte, assédio e discursos alucinados”
Diz que a liberdade de expressão deve ser ensinada. Não embarcaremos num mundo como o de 1984 de Orwell? Um grande filósofo, Michel Foucault, diz que a liberdade de expressão tal como a navegação têm de ser aprendidas. É uma imagem perfeita, porque temos de o fazer nos mares tempestuosos da internet. Acrescentaria que nunca aprenderemos se não existir a possibilidade de pôr o barco a navegar. Aprender significa que, como cidadãos maduros e autónomos, tal como a imprensa e as universidades, devemos ter como objetivo saber que em democracia também se pode conviver com os discursos de ódio. É o que chamo de civilidade na navegação no mar alto. Deve e pode ser ensinado até nas escolas algo mais específico: a literacia da internet e da comunicação social. Os jovens são invadidos pela informação nos smarthphones e têm de aprender a escrutinar entre o verdadeiro e o falso, o valioso e o lixo. O que se viu nas eleições norte-americanas foi que o candidato Trump mentia, as pessoas acreditavam e a verdade desaparecia do debate. Como evitar? Não penso que os jornais possam revelar a verdade. O The New York Times eo The Washington Post, entre muitos outros jornais mundiais, serão de confiança porque confirmam as fontes e têm boas práticas do jornalismo. Mas, o problema é outro, o de não serem capazes de entrar nas câmaras de eco da internet. Dou um pequeno exemplo: Trump disse repetidamente que Barack Obama não tinha nascido nos EUA, mas o que ele realmente afirmou era que muitas pessoas “sentiam” que isso era verdade. Não que ele, Trump, pensasse assim. Como muita gente tinha essa desconfiança, a comunicação social não conseguiu esclarecer essas mentiras ou meias verdades devido à sua constante repetição. É uma das leis da propaganda criar uma solidariedade na indignação entre os que ouvem as falsidades. Nesta luta contra uma tecnologia que não é neutral a Europa tem um lugar? Sim, e um lugar muito importante, porque é um dos grandes do mundo e possui um imenso poder de negociação. Considero mesmo que a União Europeia é uma grande força na luta contra os superpoderes privados que as empresas dos Estados Unidos impõem aos cidadãos que estão interligados.