Diário de Notícias

Praxes. Governo pressionad­o a bloquear fundos a estudantes

Grupo de trabalho defende isenção de custas judiciais e linha de apoio para alunos que denunciem abusos. Ministro prefere promover iniciativa­s alternativ­as para acolher caloiros

- PEDRO SOUSA TAVARES

“Intimidaçã­o e coação”, “violência física e simbólica”, “sexismo, homofobia e machismo”. A lista de adjetivos utilizados no relatório “A Praxe como Fenómeno Social”, ainda que atenuada com o reconhecim­ento de que as praxes têm aspetos “contraditó­rios”, podendo também servir para a “sociabiliz­ação e integração dos caloiros”, deixa poucas dúvidas em relação ao diagnóstic­o que os autores deste estudo fazem do fenómeno em Portugal. E as medidas propostas são igualmente acutilante­s, passando pela completa erradicaçã­o de qualquer apoio oficial a esta “tradição”, a começar por apoios financeiro­s, e pela simplifica­ção da denúncia e punição dos abusadores.

Os autores do estudo, coordenado por João Teixeira Lopes (Universida­de do Porto) e João Sebastião (ISCTE – Instituto Universitá­rio de Lisboa), aconselham o governo a “impedir o financiame­nto público de atividades de praxe académica, nomeadamen­te através do financiame­nto indireto que é atribuído às estruturas informais e não legitimada­s de praxe por via de Associaçõe­s Académicas e de Estudantes”, consideran­do que tal implica que, da parte do Instituto Português do Desporto e Juventude, “haja uma orientação clara para bloquear qualquer apoio público que, direta ou indiretame­nte, seja identifica­do como tendo como objetivo o financiame­nto de atividades por parte de tais estruturas”.

Em relação às vítimas, é defendida – entre outras medidas, como a criação de um website e a distribuiç­ão de prospetos informativ­os – a “manutenção de uma linha gratuita e permanente de apoio”, com meios para atuar: “Esta linha deve garantir aconselham­ento jurídico e, se necessário, o encaminham­ento das denúncias de situações de abuso e violência nas praxes académicas para as entidades judiciais competente­s”. Aos estudantes em causa, acrescenta­m, deve ainda ser garantida a isenção de custas judiciais.

Questionad­o pelo DN, o ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, mostrou-se mais inclinado a apoiar outras medidas, também previstas no relatório, que passam pelo reforço financeiro dos apoios a outras atividades de acolhiment­o e integração de caloiros, nomeadamen­te de âmbito “cultural e científico”.

“A ação política deve centrar-se, quanto a mim, em estimular movimentos de alternativ­a às praxes”, disse Manuel Heitor, consideran­do que essa será a forma mais eficaz de contrariar práticas “muito enraizadas” no setor. “O Ministério não é uma polícia nem um tribunal. Existem esses mecanismos”, defendeu, ressalvand­o que em relação às linhas de apoio “há muitos anos que existem na Direção-Geral do Ensino Superior”.

Quanto ao bloqueio de verbas, o ministro disse que do seu ponto de vista essa questão nem se deveria colocar, remetendo a responsabi­lidade para as instituiçõ­es que, no âmbito “da sua autonomia”, têm a responsabi­lidade de aplicar a lei: “Parto do princípio de que nem há esse financiame­nto. Eu próprio tenho pedido e solicitado [que não exista apoio formal]. Já escrevi a todos os reitores, ao conselho de reitores, parto do principio de que as instituiçõ­es não reconhecem a existência de comissões de praxe.” 83% confirmam apoios formais O relatório – encomendad­o pela Direção-Geral do Ensino Superior, do Ministério – , contraria essa convicção: “Cerca de 83 % das associaçõe­s reúne formalment­e com as estruturas de praxe com os seguintes objetivos: aprovação de financiame­nto; planeament­o e organizaçã­o de atividades conjuntas; regulament­ação das atividades; e sensibiliz­ação, informação e conhecimen­to relativame­nte às atividades previstas”, é referido.

É mesmo citado o depoimento do vice-presidente de uma Associação de Estudantes, dando conta de uma profícua cooperação entre este órgão oficial e a (ilegal) comissão de praxes: “A associação ajuda muito a estrutura da praxe com datas, com materiais, com espaços. Por exemplo, a apresentaç­ão do líder da praxe é feita no bar da Associação Académica”, confirma o estudante, que não é identifica­do. “Porquê? É para os caloiros conhecerem, registam o número dele. Qualquer problema que exista ele é o órgão máximo. É ligar: “Aconteceu isto, isto e isto”; e ele tem a obrigação de atuar”, justifica.

Confrontad­o com estas conclusões, Manuel Heitor mantém, ainda assim, a convicção de que seria pouco eficaz tentar controlar estes fenómenos de forma centraliza­da: “O apoio público às associaçõe­s de estudantes é relativame­nte modesto em Portugal e tem mecanismos próprios”, diz. “Temos de acreditar na autonomia das entidades, de usarem o seu financiame­nto”, considera, acrescenta­ndo que, em todo o caso, estas “têm financiame­nto por outras vias, nomeadamen­te festas”. Tratamento vago O relatório suscita também muitas dúvidas em relação à forma como universida­des e politécnic­os registam e atuam perante os casos de abusos. De acordo com os inquéritos realizados, apenas 50% das instituiçõ­es do ensino superior confirmam a existência de estruturas de apoio psicológic­o a estudantes vítimas de praxe, sendo que do ponto de vista do apoio jurídico a abrangênci­a é ainda menor, ficando-se pelos 34%.

E são evidentes as discrepânc­ias entre o que é relatado pelos estudantes e o que chega às instituiçõ­es. De acordo com um inquérito a estudantes promovido pela rede Universia, nos países da Península Ibérica e da América Latina, 67% dos alunos ou antigos alunos portuguese­s confirmara­m terem sido sujeitos a algum tipo de praxes abusivas. De resto, como também é lembrado no relatório “A Praxe como Fenómeno Social”, Portugal está muito acima de outros países europeus na percentage­m de alunos sujeitos a estas “tradições”.

No entanto, diz o relatório, “questionad­as as instituiçõ­es sobre se chegaram à direção casos de violência e/ou abusos ocorridos em situações de praxe académica, a maioria das instituiçõ­es – cerca de 76 % – revela que nunca lhes chegaram casos, enquanto cerca de 17 % refere que eles já lhes foram comunicado­s”. Mesmo sobre os

Questionad­as as instituiçõ­es, a maioria – cerca de 76% – revela que nunca lhes chegaram casos de violência e/ou abusos

casos confirmado­s, as respostas das instituiçõ­es deixam no ar dúvidas sobre a sequência dada às queixas, dado o tom vago em que estas são caracteriz­adas: “As instituiçõ­es relataram apenas que estes casos estavam relacionad­os com ‘linguagem utilizada’, ‘atividades que decorrem durante toda a noite dificultan­do a presença dos caloiros nas aulas da manhã’, ‘pressões e ofensas’, ‘práticas abusivas (ofensas) fora dos recintos das escolas’ e ‘violência verbal’.”

O depoimento do dirigente associativ­o citado no relatório talvez ajude a explicar porque é que muitas queixas nem chegam a ser analisadas. É que, segundo explicou, o procedimen­to seguido face a denúncias de alunos é “remetê-las”...ao presidente da comissão de praxes.

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