Praxes. Governo pressionado a bloquear fundos a estudantes
Grupo de trabalho defende isenção de custas judiciais e linha de apoio para alunos que denunciem abusos. Ministro prefere promover iniciativas alternativas para acolher caloiros
“Intimidação e coação”, “violência física e simbólica”, “sexismo, homofobia e machismo”. A lista de adjetivos utilizados no relatório “A Praxe como Fenómeno Social”, ainda que atenuada com o reconhecimento de que as praxes têm aspetos “contraditórios”, podendo também servir para a “sociabilização e integração dos caloiros”, deixa poucas dúvidas em relação ao diagnóstico que os autores deste estudo fazem do fenómeno em Portugal. E as medidas propostas são igualmente acutilantes, passando pela completa erradicação de qualquer apoio oficial a esta “tradição”, a começar por apoios financeiros, e pela simplificação da denúncia e punição dos abusadores.
Os autores do estudo, coordenado por João Teixeira Lopes (Universidade do Porto) e João Sebastião (ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa), aconselham o governo a “impedir o financiamento público de atividades de praxe académica, nomeadamente através do financiamento indireto que é atribuído às estruturas informais e não legitimadas de praxe por via de Associações Académicas e de Estudantes”, considerando que tal implica que, da parte do Instituto Português do Desporto e Juventude, “haja uma orientação clara para bloquear qualquer apoio público que, direta ou indiretamente, seja identificado como tendo como objetivo o financiamento de atividades por parte de tais estruturas”.
Em relação às vítimas, é defendida – entre outras medidas, como a criação de um website e a distribuição de prospetos informativos – a “manutenção de uma linha gratuita e permanente de apoio”, com meios para atuar: “Esta linha deve garantir aconselhamento jurídico e, se necessário, o encaminhamento das denúncias de situações de abuso e violência nas praxes académicas para as entidades judiciais competentes”. Aos estudantes em causa, acrescentam, deve ainda ser garantida a isenção de custas judiciais.
Questionado pelo DN, o ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, mostrou-se mais inclinado a apoiar outras medidas, também previstas no relatório, que passam pelo reforço financeiro dos apoios a outras atividades de acolhimento e integração de caloiros, nomeadamente de âmbito “cultural e científico”.
“A ação política deve centrar-se, quanto a mim, em estimular movimentos de alternativa às praxes”, disse Manuel Heitor, considerando que essa será a forma mais eficaz de contrariar práticas “muito enraizadas” no setor. “O Ministério não é uma polícia nem um tribunal. Existem esses mecanismos”, defendeu, ressalvando que em relação às linhas de apoio “há muitos anos que existem na Direção-Geral do Ensino Superior”.
Quanto ao bloqueio de verbas, o ministro disse que do seu ponto de vista essa questão nem se deveria colocar, remetendo a responsabilidade para as instituições que, no âmbito “da sua autonomia”, têm a responsabilidade de aplicar a lei: “Parto do princípio de que nem há esse financiamento. Eu próprio tenho pedido e solicitado [que não exista apoio formal]. Já escrevi a todos os reitores, ao conselho de reitores, parto do principio de que as instituições não reconhecem a existência de comissões de praxe.” 83% confirmam apoios formais O relatório – encomendado pela Direção-Geral do Ensino Superior, do Ministério – , contraria essa convicção: “Cerca de 83 % das associações reúne formalmente com as estruturas de praxe com os seguintes objetivos: aprovação de financiamento; planeamento e organização de atividades conjuntas; regulamentação das atividades; e sensibilização, informação e conhecimento relativamente às atividades previstas”, é referido.
É mesmo citado o depoimento do vice-presidente de uma Associação de Estudantes, dando conta de uma profícua cooperação entre este órgão oficial e a (ilegal) comissão de praxes: “A associação ajuda muito a estrutura da praxe com datas, com materiais, com espaços. Por exemplo, a apresentação do líder da praxe é feita no bar da Associação Académica”, confirma o estudante, que não é identificado. “Porquê? É para os caloiros conhecerem, registam o número dele. Qualquer problema que exista ele é o órgão máximo. É ligar: “Aconteceu isto, isto e isto”; e ele tem a obrigação de atuar”, justifica.
Confrontado com estas conclusões, Manuel Heitor mantém, ainda assim, a convicção de que seria pouco eficaz tentar controlar estes fenómenos de forma centralizada: “O apoio público às associações de estudantes é relativamente modesto em Portugal e tem mecanismos próprios”, diz. “Temos de acreditar na autonomia das entidades, de usarem o seu financiamento”, considera, acrescentando que, em todo o caso, estas “têm financiamento por outras vias, nomeadamente festas”. Tratamento vago O relatório suscita também muitas dúvidas em relação à forma como universidades e politécnicos registam e atuam perante os casos de abusos. De acordo com os inquéritos realizados, apenas 50% das instituições do ensino superior confirmam a existência de estruturas de apoio psicológico a estudantes vítimas de praxe, sendo que do ponto de vista do apoio jurídico a abrangência é ainda menor, ficando-se pelos 34%.
E são evidentes as discrepâncias entre o que é relatado pelos estudantes e o que chega às instituições. De acordo com um inquérito a estudantes promovido pela rede Universia, nos países da Península Ibérica e da América Latina, 67% dos alunos ou antigos alunos portugueses confirmaram terem sido sujeitos a algum tipo de praxes abusivas. De resto, como também é lembrado no relatório “A Praxe como Fenómeno Social”, Portugal está muito acima de outros países europeus na percentagem de alunos sujeitos a estas “tradições”.
No entanto, diz o relatório, “questionadas as instituições sobre se chegaram à direção casos de violência e/ou abusos ocorridos em situações de praxe académica, a maioria das instituições – cerca de 76 % – revela que nunca lhes chegaram casos, enquanto cerca de 17 % refere que eles já lhes foram comunicados”. Mesmo sobre os
Questionadas as instituições, a maioria – cerca de 76% – revela que nunca lhes chegaram casos de violência e/ou abusos
casos confirmados, as respostas das instituições deixam no ar dúvidas sobre a sequência dada às queixas, dado o tom vago em que estas são caracterizadas: “As instituições relataram apenas que estes casos estavam relacionados com ‘linguagem utilizada’, ‘atividades que decorrem durante toda a noite dificultando a presença dos caloiros nas aulas da manhã’, ‘pressões e ofensas’, ‘práticas abusivas (ofensas) fora dos recintos das escolas’ e ‘violência verbal’.”
O depoimento do dirigente associativo citado no relatório talvez ajude a explicar porque é que muitas queixas nem chegam a ser analisadas. É que, segundo explicou, o procedimento seguido face a denúncias de alunos é “remetê-las”...ao presidente da comissão de praxes.