Ana Ribeiro: “O Uruguai é um eterno equilíbrio entre Brasil e Argentina”
A historiadora uruguaia Ana Ribeiro, que hoje dá uma conferência sobre a relação entre Portugal e o Uruguai no Palácio Nacional da Ajuda, contou ao DN o que marca a identidade deste país que já foi português. Portugal que, afirma, “continua presente na língua e na cozinha ou na sugestão de tristeza do tango, devedor do fado”. Fora os historiadores, os uruguaios têm noção de que o seu país chegou a fazer parte de Portugal? Claro que sim. Apesar de as novas gerações nos preocuparem com os seus não-saberes, é algo que se sabe. Mas o que é certo é que esse período foi pouco estudado na historiografia uruguaia. A Colónia de Sacramento, Património da Humanidade, é o símbolo maior dessa ligação. Qual é a sua importância para a história uruguaia? A Colónia é um dos orgulhos nacionais pelo valor patrimonial, vital para o turismo. Em Colónia há uma casa-museu portuguesa e outra espanhola, nas quais os visitantes podem ver os elementos materiais que caracterizavam as culturas dos dois impérios que disputavam o local. Os tempos da fundação da Colónia de Sacramento [em 1680 pelo português Manuel Lobo] e a longa disputa entre Espanha e Portugal terminaram a favor de Espanha. Mas diante das invasões napoleónicas e da crise da monarquia espanhola, as colónias americanas entraram no período de revoluções que culminou com as independências. Portugal invade o território do atual Uruguai em 1811 e volta a fazê-lo em 1817. Em 1821 passa para a coroa portuguesa, com o nome de Província Cisplatina. Quando o Brasil se separa de Portugal, passa para o domínio brasileiro. Em 1825 há uma rebelião e, três anos mais tarde, nasce um novo país independente chamado Uruguai. O seu apelido é de origem portuguesa? A minha família paterna era de Rivera, na fronteira com o Brasil, e todos os antepassados do meu pai eram brasileiros do Rio Grande do Sul, de ascendência açoriana. Na minha casa, o portunhol era habitual. O que liga hoje Portugal e Uruguai? Fruto da conquista e colonização, o Uruguai tem 8% da população de ascendência africana, enquanto os indígenas que povoaram o território não sobreviveram como tribos, mas como elementos isolados. Por isso, a imigração europeia de finais do século XIX e princípios do século XX, maioritariamente espanhóis, portugueses, franceses, italianos, duplicou a população hispânica original e é predominante na nossa configuração. Portugal está presente na língua e na cozinha, na sugestão de tristeza do tango, devedor do fado, além de estar nas relações comerciais que hoje unem os nossos países. Pessoalmente, contudo, penso que o mais significativo de Portugal é o lugar que ocupa nos nossos relatos históricos, que invariavelmente colocam Portugal como o “outro” da linha fronteiriça, o rival do império espanhol quando fazíamos parte dele. Essa alteridade do império refinado, adotado pela pujante Inglaterra, é a imagem mais comum de Portugal nas páginas da história do país. Apesar de contrastar com os portugueses que conhecíamos pessoalmente, que chegaram em busca de trabalho e oportunidades que a Europa lhes negava. O Uruguai é um país entre dois gigantes: Brasil e Argentina. Isso marca de alguma forma a identidade uruguaia? Completamente. A nossa existência como país é um eterno equilíbrio entre ambos. Toda a nossa diplomacia está marcada pela necessidade de sobreviver nesse equilíbrio instável entre dois gigantes. A neutralidade, a defesa das liberdades e autodeterminação dos povos, a participação internacional como agente de conciliação e diálogo – fatores que caracterizaram a política externa uruguaia – nascem dessa posição geopolítica. O nosso sistema democrático, consolidado a partir do século XX, foi também uma fortaleza a esgrimir face aos nossos vizinhos: blindámo-nos a partir das instituições e das leis. Por outro lado, ao reforçar essa identidade de país “pequeno”, as virtudes e triunfos do país parecem chegar por via da excecionalidade. Isto não é verdade, nem positivo: preferia um relato menos de exceção e mais de resultado de esforços a largo prazo. É mais fácil lidar com o gigante Brasil ou com a Argentina, com a qual tantos aspetos da cultura uruguaia por vezes se confundem (do assado ao tango)? Depende do momento histórico, do governo atual, das conjunturas internacionais, das lideranças individuais, das exigências comerciais e de tantos fatores como os que fazem a história. O Uruguai é conhecido pelo futebolista Luis Suárez e pelo ex-presidente José Mujica. Mas o que é que vos define? O estereótipo é algo a que nenhum país escapa, porque vocês são conhecidos pelo Ronaldo e os fados e, naturalmente, devem sentir que são mais do que isso. Acho que nada nos define mais do que o nosso apego ao sistema democrático, baseado numa participação cidadã ativa e atenta. Claro que isso não costuma gerar imagens tão potentes e pontuais como as de um goleador... É um dos países mais vanguardistas da América Latina (despenalizou o aborto, legitimou o casamento homossexual, legalizou a produção e venda de canábis). Isso tem que ver com a herança do povoamento europeu da região? Da Europa chegaram os nossos antepassados, junto com as últimas ideologias, as novidades científicas e as fórmulas de progresso. Os exílios políticos de intelectuais europeus juntaram-se às influências difundidas pelas nossas elites, produto das suas viagens de estudo e formação. Governaram com dificuldade nos difíceis anos após a independência, mas foram fundamentais para incorporar o decálogo do que tinha de ser feito para a consolidação. Insistiram na educação e não se enganaram. Mas nenhuma influência é totalmente determinada. Os países são resultado da imponderável fórmula desafio-resposta. A América não é uma cópia da Europa, nem mesmo um país com tradição de ser mais europeu que americano, como o Uruguai.