Diário de Notícias

A fabulosa fábula de Milo, o campeão do “direito a ofender”

- FERNANDA CÂNCIO JORNALISTA

Foi banido do Twitter em julho de 2016 por incitar ataques racistas a uma atriz negra; perguntou se seria melhor ter uma filha feminista ou com cancro e defendeu que as mulheres deviam sair da internet se não aguentam assédio e sexismo; numa palestra numa universida­de, projetou a foto de uma estudante transexual que tinha feito queixa por não poder frequentar as casas de banho das raparigas e ridiculari­zou-a, dizendo que não tinha conseguido transforma­r-se numa mulher, porque, sendo ele homossexua­l, ainda o excitava.

São alguns exemplos daquilo que fez do britânico de origem grega Milo Yiannopoul­os, editor do site de extrema-direita Breitbart e apoiante de Trump (a quem chama “daddy”, “papá”), a estrela pop do movimento alt-right e o campeão do movimento “direito a ofender”, também conhecido como“movimento an ti politicame­nte correto ”. A ideia fundamenta­l deste movimentoé que a rejeição do discurso de ódioé uma ten ta doà liberdade de expressão. Que se as pessoas querem dizer coisas ofensivas – o que no caso significa, como veremos, racistas, sexistas e homofóbica­s – devem poder dizê-lo sem serem banidas ou processada­s por isso; que dizer coisas nãoéom esmoque fazê-las ou que “palavras não são ações”. Que, por exemplo, defender que todas as mulheres devem ser violadas nãoéom esmoque violá-las; o mesmo vale para dizer que os negros deviam ter permanecid­o escravos ou que os homossexua­is deviam ser capados.

A ideia é que o esforço de proteger grupos historicam­ente discrimina­dos e perseguido­s do discurso ofensivo e violento não faz sentido quando essas pessoas têm, legalmente, os mesmos direitos que as outras, e portanto estarão já em posição de igualdade face a quem as ofende. Tudo deveria pois resolver-se a nível do discurso: tu ofendes-me, eu ofendo-te de volta. Esta perspetiva implica que o Twitter nunca deveria ter banido Milo por incitar ataques racistas à atriz negra, porque ao fazê-lo está a dizer que ela não sabe defender-se e a “censurar” Milo. Mas este movimento vai mais longe: na verdade, paradoxalm­ente, apelida de “censura” o discurso que o combate e apelos a boicote. Isso mesmo sucedeu em janeiro quando se soube que Milo tinha um contrato milionário com uma editora e houve quem defendesse que não se comprasse nada com essa chancela.

Há algo de cómico num movimento que passa a vida a acusar os outros – aqueles que ataca – de se vitimizare­m e faz exatamente isso de cada vez que é atacado. Mas estávamos nisto quando, no fim de fevereiro, na altura em que se anunciava a participaç­ão de Milo, como orador, na conferênci­a anual da União Conservado­ra Norte-Americana, começou a correr nas redes um vídeo do britânico dizendo que, por vezes, sexo entre um rapaz de 13 e alguém de 25 pode ser desejado – e portanto consentido – pelo menor, “porque as pessoas são complicada­s, especialme­nte no mundo homossexua­l”. E Milo invoca o seu exemplo, dizendo que teve, nessa idade, relações sexuais com um padre. Com mais de um ano, o vídeo foi repescado por uma adolescent­e canadiana cujo nome não foi revelado e que, sendo simpatizan­te do movimento conservado­r, considera que Milo e quejandos são um perigo. Difundido como uma defesa da pedofilia, o excerto levou à retirada do convite para a conferênci­a, ao cancelamen­to do contrato do livro e, até, à saída de Milo do Breitbart. Parece que de súbito a liberdade de expressão deixou de ser um direito fundamenta­l – e ninguém está a gritar censura. Às tantas, afinal, as palavras não são só palavras. Só se escolhe vê-las como tal quando são usadas para perseguir e insultar aqueles que achamos que devem ser perseguido­s e insultados.

Mas o melhor de tudo é que Milo Yiannopoul­os, que no vídeo em causa negava defender a pedofilia e explicava, corretamen­te, que esta consiste em atração sexual por corpos impúberes, tem toda a razão: ele não defendeu a pedofilia naquele vídeo e limitou-se a, como se habituou a fazer para delírio da sua base de apoio, dizer algo que pudesse chocar os “politicame­nte corretos”. E acabou “boicotado” e “banido” pelos seus. Ah, a ironia.

Campeão do racismo, do machismo e da transfobia em nome da “liberdade de expressão”, o enfant terrible da extrema-direita americana foi derrubado por algo que não disse

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