Entre Pessoa e Goethe
Nos dias de hoje, o nacionalismo xenófobo de Trump, Le Pen ou Wilders está a ganhar uma popularidade assustadora. Uma resposta a este fenómeno vem precisamente da literatura portuguesa – a famosa frase de Fernando Pessoa: ”A minha pátria é a língua portuguesa”. Não apenas porque escrever, ler, ouvir e falar são, na visão de Pessoa, acções não agressivas e violentas, mas também porque o patriotismo, que o poeta português descreve, é uma experiência pessoal e individual, tornando-se assim numa espécie de antídoto contra o nacionalismo colectivo que, como nós alemães bem sabemos, pode ter consequências devastadoras para toda a humanidade. Os sentimentos que temos por um país, como uma comunidade ou como uma representação das nossas origens, reflectem muitas vezes realidades tão diversificadas que só podem ser uma experiência única e individual. Mais nada.
A minha relação com a pátria de Fernando Pessoa é complexa. Todos os dias, vivo entre a língua portuguesa e a minha língua mãe, o alemão. Como os portugueses são na maioria pessoas amáveis e bem educadas, recebo muitos elogios em relação ao meu domínio do português. No en- tanto, só o facto de receber elogios é por si só o reconhecimento de que não falo o português corretamente, porque se eu o falasse perfeitamente, nem se notava que o português não era a minha língua mãe. Estou a viver uma experiência que já conhecia, mas de uma perspectiva diferente. Cresci na Alemanha com amigos cujos pais não eram alemães. Eram cultos, extremamente inteligentes e viviam já por longos anos na Alemanha, mas mesmo assim fizeram sempre os mesmos erros em termos linguísticos. Não percebia como era possível. Agora sei que é completamente normal. Quando chegamos a um ponto em que a língua estrangeira já não é um entrave à integração plena na sociedade que nos acolhe, não sentimos mais a necessidade de continuar a aprender com o mesmo empenho que a priori. E por isso continuo a pedir um ensopado de “borego” e a falar da queda do “murro” de Berlim.
A língua é fundamental para a integração, mas também para a sobrevivência. Lembro-me que durante uma viagem noturna na Argentina, andei à boleia com um camionista que fazia a ligação entre Buenos Aires e o Mar del Plata. Como ainda não sabia falar espanhol e o percurso era monótono, adormeci já depois da meia-noite. O condutor também. Só por um milagre é que não acabámos na berma. Rápido decidi que tinha de conversar com o camionista para o manter acordado. Dizia palavras como “Schumacher” e ele começava a falar do piloto alemão, mas eu não percebia nada do que ele estava a dizer. Depois lancei “Matthäus” e “Rummennige” e “Maradona” ... e lá chegámos ao destino, sãos e salvos.
Em Portugal, nunca tive uma experiência tão assustadora, porque já sabia falar alguma coisa antes de aqui chegar. Mesmo assim, demorou algum tempo antes de passar no teste mais importante que diz respeito ao domínio de uma língua estrangeira: fazer as pessoas rir, usando somente palavras. É aqui que tenho uma pequena vantagem. Quando conto uma piada que ninguém percebe, porque simplesmente não tinha humor, posso desculpar-me dizendo que o sentido talvez se tenha perdido na tradução. Infelizmente os meus amigos já não caem nessa, porque me conhecem demasiado bem.
Mesmo se não partilhamos a mesma língua e se não percebemos o que o outro está a dizer, é possível transmitir humor. Os melhores artistas desse exercício são as crianças, que tentando imitar uma língua estrangeira absolutamente desconhecida, provocam as melhores gargalhadas. A mim aconteceu algo parecido com o alemão. Ao contrário da pátria de Pessoa, a língua de Goethe tem uma particularidade: podemos juntar vários substantivos na mesma palavra. Quando era criança, eu e os meus irmãos passávamos horas a construir as mais compridas palavras possíveis. A nossa favorita era: Wolkenkratzerfahrstuhlführermützenknopfreinigunsmittel. Quando cheguei a Portugal bastava dizer esta palavra e ganhava logo risos e a simpatia das pessoas. O que é que significa? Não vou dizer. Aprendam alemão.
A minha relação com a pátria de Fernando Pessoa é complexa. Todos os dias, vivo entre a língua portuguesa e a minha língua mãe, o alemão