VIOLÊNCIA DOMÉSTICA UM TERÇO DAS MULHERES MORTAS TINHAM APRESENTADO QUEIXA
Mais de metade das vítimas estavam em processo de separação e dois terços dessas mortes ocorreram nos dois meses após a separação. A análise foi feita pela Polícia Judiciária na Grande Lisboa.
Treze das 43 mulheres assassinadas pelos maridos nos últimos cinco anos, na Grande Lisboa, já tinham apresentado queixa às autoridades por violência doméstica. Mais de metade dessas vítimas estava em processo de separação (51,2%), por iniciativa delas, e a grande maioria das mortes (68,4%) aconteceu no prazo de dois meses após a separação.
Estas são algumas das conclusões do estudo “Homicídio, femicídio e stalking no contexto das relações de intimidade”, que está a ser desenvolvido pela Polícia Judiciária, em parceria com investigadores da Universidade do Minho e do Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, e Ministério Público (Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa – 7.ª secção).
Para já, a equipa científica analisou 43 processos-crime de homicídios conjugais dos 45 ocorridos na Grande Lisboa de 2010 a 2015. Ficaram apenas de fora dois processos por ainda se encontrarem na fase de recurso, como adiantou ao DN Cristina Soeiro, psicóloga da Polícia Judiciária, uma das investigadoras.
A recolha vai continuar para ser possível realizar, dentro de um ano, um retrato nacional deste fenómeno. Afinal, Portugal apresenta – entre 2010 e 2015 – uma média de 42 mulheres assassinadas por ano (a contabilidade do último ano ainda não foi oficialmente divulgada).
“Foi revelador perceber que dos 43 casos da Grande Lisboa, 65% já eram vítimas de violência doméstica prévia e, dessas mulheres, quase metade já tinha denunciado a situação às autoridades”, comenta Cristina Soeiro. “A quantidade das vítimas que se queixou de violência é muito superior ao que achávamos ser possível. É representativo. Mas estamos a falar da Grande Lisboa, vamos ver como será no Norte do país, para onde vamos avançar na próxima fase do estudo.”
Dos fatores de risco avaliados pelo estudo, constata-se que a maior parte dos homicidas (46,5%) tinha acesso a armas de fogo (46,5%), precisamente o tipo de arma mais usado nestes crimes (em 41,9%), logo seguido da arma branca (37,2%). Mais: em 82,1% dos homicídios já havia violência psicológica, a maior parte dela através de ameaças de morte à vítima (64,3%).
Dos 43 processos-crime analisados, 27 tiveram condenações e 16 foram arquivados por suicídio do homicida depois de ter assassinado a mulher. Medidas de coação falham O que está a falhar no sistema para não se conseguirem impedir estas mortes, mesmo quando as vítimas até já tinham apresentado queixa por violência doméstica? “Falham as medidas de proteção das vítimas e as medidas de coação aos agressores aplicadas pela justiça”, responde Íris Almeida, uma das investigadoras do estudo, psicóloga na equipa do Instituto Superior de Ciências da Saúde do Egas Moniz, que faz a avaliação de risco dos casos para os tri-
bunais. “Já me aconteceu acompanhar um caso em que o juiz de instrução aplicou a proibição de contactos ao agressor, quando este e a vítima, que estavam já separados, até viviam no mesmo bairro”, exemplifica a psicóloga.
Íris Almeida recorda-se também de agressores que acompanhou que “tinham várias queixas de violência doméstica contra eles mas a única medida que a justiça lhes aplicou foi o afastamento da vítima”. Se o afastamento não for controlado através de pulseira eletrónica ou vigilância das autoridades não é eficaz.
Por outro lado, se 51,2% das mortes aconteceram em casais que estavam em processo de separação, seria de supor que essa fase (do divórcio) fosse considerada de risco para a mulher. Mas não é isso que acontece. “Muitas vezes os tribunais consideram que se o casal está em separação já não há risco. Pelo contrário, há risco porque o homem agressor não concebe a sua vida sem a mulher”, analisa Íris Almeida.
Na avaliação de risco que a psicóloga faz para os tribunais tem constatado outro pormenor: “Os agressores sabem que dificilmente são presos pelo crime de violência doméstica. Sabem que é difícil aplicar a prisão preventiva nestes casos e também que, em julgamento, são raras as condenações a pena efetiva de prisão por violência doméstica.” Prisão para agressores é rara A título de exemplo, a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa divulgou, em agosto de 2015, que em 1059 casos de violência doméstica analisados num período de nove meses, mais de um terço (36,6%) dos processos terminaram com uma absolvição (388 casos) e, das 665 condenações, apenas 84 foram a prisão efetiva, ou seja, 8% do total. As outras condenações foram a pena suspensa (146 casos) e a pena suspensa com imposição de regras de conduta (382 casos).
A psicóloga Cristina Soeiro, da Polícia Judiciária, adiantou ainda que o estudo não reflete os efeitos de novos instrumentos que foram introduzidos no sistema como a avaliação de risco feita pelas polícias. “Mas os polícias têm de ser treinados para usar a avaliação de risco. E temos de melhorar a intervenção nos agressores: têm de ser retirados de cena.”
Daniel Cotrim, assessor técnico da direção da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), também é da opinião que “o sistema de proteção às vítimas de violência doméstica não está a funcionar e as medidas de coação são aplicadas tardiamente”.