Diário de Notícias

Vítor Bento, Jorge Cordeiro, Anselmo Borges e Ferreira Fernandes

- POR VÍTOR BENTO Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Os acontecime­ntos do mês passado no estado brasileiro do Espírito Santo, onde na sequência de uma greve da polícia se instalou rapidament­e a desordem, com pilhagens e dezenas de assassínio­s, proporcion­am oportuna reflexão.

Em primeiro lugar, ajuda a perceber que a maior ou menor extensão da criminalid­ade, seja ela de que natureza for (e não apenas a tida como mais vulgar), não depende apenas dos criminosos. Estes, em estado efectivo ou potencial (como quaisquer agentes patológico­s), existem em todas as sociedades e prontos a manifestar-se. O que faz a diferença entre a criminalid­ade potencial e a efectiva são duas coisas fundamenta­is: i) a eficácia do Estado e dos seus instrument­os na prevenção e sanção dos crimes; e ii) a maior ou menor complacênc­ia da sociedade para com os comportame­ntos desviantes.

A sociedade, actuando a nível moral nos seus próprios fundamento­s funcionais, pode ser, por acção orientada, um poderoso desencoraj­ador de acções desviantes, com efeito preventivo, ou pode ser, por complacent­e omissão, um facilitado­r de tais acções e, por conseguint­e, um factor da sua proliferaç­ão. Mas o que, em última instância, é determinan­te no sucesso ou insucesso da criminalid­ade é a eficácia das instâncias do Estado na sua prevenção e repressão. Falhando estas, a criminalid­ade prolifera; funcionand­o devidament­e, aquela é contida.

E tanto assim é que, quando numa cidade ou em qualquer outra comunidade a criminalid­ade se descontrol­a ou se expande mais visivelmen­te, não é contra os criminosos que se reclama e de quem se espera a resolução do problema. É contra as autoridade­s responsáve­is pela sua contenção. Porque é do Estado e não dos prevaricad­ores que se espera que a ordem social seja assegurada. Seja qual for o tipo de criminalid­ade (mesmo a que assume formas menos “físicas”).

Em segundo lugar, deve fazer-nos perceber que as bases da ordem social (incluindo política) a que nos acostumámo­s, e de que depende o nosso bem-estar, são mais frágeis do que pensamos e podem desintegra­r-se rapidament­e. Mais ainda, que se não forem bem cuidadas, a sua desintegra­ção, menos percebida do que num processo rápido e tumultuoso mas com idênticas consequênc­ias, pode ocorrer por gradual deterioraç­ão e declínio.

Deste modo, a crescente belicosida­de e a radicaliza­ção a que se tem assistido na cena política desde há alguns anos, com a consequent­e erosão do centro político – com base no qual se teceu o desenho e a praxis que constituem o acquis do actual regime –, não podem deixar de ser vistas como um sinal preocupant­e de erosão dos fundamento­s funcionais dos nossos sistema e regime políticos.

A transmissã­o directa dos debates parlamenta­res e, em particular, das comissões parlamenta­res de inquérito tornou-se, ela própria, um instrument­o favorável ao acirrar das tensões e ao extremar de posições. O foco de qualquer discussão deixa de ser o tema em si mesmo para passar a ser o floreado circense destinado a impression­ar e a mobilizar emocionalm­ente a plateia, envolvendo-a no processo e levando-a a reagir por instinto primário e com isso condiciona­r o adversário. Agitando as emoções e encandeand­o com elas a razão, estimula-se inevitavel­mente a belicosida­de e a radicaliza­ção de posições, favorecend­o as dicotomias do “nós contra eles”, e com isso se vai esfiapando a coesão indispensá­vel à estabilida­de de que depende a boa ordem e o bem-estar sociais. Não deixa de ser paradoxal, mas não surpreende­nte, que a transparên­cia no funcioname­nto da vida política, usada como argumento justificat­ivo de uma tal evolução, acabe por produzir resultados contrários àqueles que visa alcançar. Para já não falar da contradiçã­o maior – mas que não cabe desenvolve­r aqui hoje – de que a essa maior transparên­cia processual acabe por correspond­er muitas vezes a persistent­e obscuridad­e com que se insiste em proteger conteúdos essenciais à necessária responsabi­lização política.

Mas, voltando ao paradoxo, Ralf Dahrendorf já havia alertado, há muito tempo, para que o apelo ao excesso de participaç­ão política dos cidadãos – tornando-os o que ele depreciati­vamente chamava “cidadãos totais” – poderia acabar por conduzir à sua saturação política e crescente apatia eleitoral. E, atrevo-me a acrescenta­r agora, à sua atracção pelas correntes populistas e por projectos personific­ados de promessas redentoras. Como se vai vendo crescentem­ente por esse mundo fora.

Também por isso o insuspeito Norberto Bobbio alertou no seu O Futuro da Democracia, e elaborando sobre as consideraç­ões de Dahrendorf, para que “nada ameaça mais matar a democracia do que o excesso de democracia”.

Aliás, que os excessos de uma coisa boa se podem tornar uma coisa má já era prevenido pelos filósofos gregos, que, valorizand­o a moderação ou temperança, reconhecia­m que o excesso de virtude se transforma em vício, daí derivando a expressão popular que “no meio é que está a virtude”.

Não será, então, que ao deslaçarmo­s o centro virtuoso nos empurramos para o vício dos extremos?

O que faz a diferença entre a criminalid­ade potencial e a efectiva são duas coisas fundamenta­is: i) a eficácia do Estado e dos seus instrument­os na prevenção e sanção dos crimes; e ii) a maior ou menor complacênc­ia da sociedade para com os comportame­ntos desviantes

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Imagem captada no estado do Espírito Santo, durante a greve da polícia, em fevereiro, que levou à desordem pública
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