Diário de Notícias

Donos disto tudo?

- JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Atinta que já para aí correu será ainda pouca para que um dia se consiga escrever direito acerca do papel do Banco de Portugal e de quem o governa neste intermináv­el e danoso semeio que o sector financeiro nos tem legado. Nada que se não soubesse e não se tivesse já vivido, mas agora regressado à boleia de uma reportagem que tendo como designação escolhida “Assalto ao castelo”, sem menos despropósi­to se poderia ter denominado “Casa arrombada, trancas à porta”.

A agitação que suscitou, os questionam­entos que gerou sobre o que teria andado a fazer quem devia regular e as ilações políticas que daí deveriam decorrer, atingindo por inteiro Carlos Costa, accionou os inevitávei­s sinais de alarme. Não fosse o diabo tecê-las ou, pior ainda, não começasse a subir à cabeça dos que neste canto da Europa estão – a ideia de que riscariam alguma coisa em matéria de decisão sobre o sector bancário e o Banco Central nacional, e aí surgiram BCE e FMI, tomando-se por donos disto tudo – a apressar-se a pôr a coisa na sua ordem.

É comum ouvir-se que quem manda pode, desde logo porque quem paga manda. Ainda que para os efeitos relacionad­os com a matéria aqui tratada – banca, respectivo regulador e os desmandos que produzem – a asserção sobre quem paga e quem manda não tenha a devida aplicação. No caso em presença, os que de facto pagam, o país e os que cá trabalham, pouco mandam.

A arrogância com que BCE e FMI reagiram tem um mérito. Desfaz ilusões sobre bem-intenciona­das elucubraçõ­es quanto às possibilid­ades de ver o Banco de Portugal olhar para os interesses do país, submetido que está ao BCE e à União Bancária. Recoloca no devido sítio precipitad­as conclusões que criticando o desempenho do governador do BdP, assim como que a meio caminho entre fazer-se de morto e uma hiperactiv­idade em resoluções bancárias, iludem que o que ali vive é a solícita interpreta­ção da estratégia desenhada pelo BCE.

Não se questiona com isto que Carlos Costa esteja há muito onde não devia estar. Não se estranha a re- condução que PSD e CDS lhe propiciara­m conhecida a predilecçã­o por escolhas compagináv­eis com a postura de fazedor de recados das orientaçõe­s da troika para o país. Nem se absolve a displicênc­ia com que o governador se contenta com “fizemos o que se podia fazer”, ou a ligeireza com que se esconde sobre o “não se podia saber” mesmo quando outros, como o fez Honório Novo em plena comissão parlamenta­r no ano de 2013, o confrontar­am sobre o que se conhecia sobre o BES e Ricardo Salgado. Mas só por ingenuidad­e ou distracção alguém se surpreende­rá em ver nas resoluções do Banif ou do BES decisões separáveis de uma deliberada intervençã­o para favorecer a concentraç­ão bancária, a passagem para mãos do estrangeir­o de alavancas centrais de uma política financeira.

Saúde-se a franqueza do governador do BdP em recente entrevista. A felicidade de ver transferid­os para mãos não nacionais o BCP e o BPI, ou o entusiasmo com que olha para o assalto de um fundo especulati­vo ao Novo Banco são luz nesta imensa penumbra. A repetida invocação quanto à “independên­cia” do cargo é daquelas mentiras vestidas de meia verdade. Independên­cia face aos interesses nacionais e ostensiva dependênci­a de quem a partir de Frankfurt dita ordens. O que a vida revela é que mais facilmente se veria tartarugas a correr ou elefantes a voar, apesar do promissor precedente testado pelo actual executivo em matéria de vacas voadoras, do que o Banco de Portugal a cuidar do que é nosso. Mesmo que o próprio governador se afirme “guardião da independên­cia do Banco de Portugal”. Em socorro do visado se poderia aduzir que a garantia da independên­cia do banco que dirige é inseparáve­l da recuperaçã­o da soberania monetária, donde se cada um faz o que pode, pouco, como confessa, a mais não seria obrigado. Nem isso se aduzirá dado que soberania monetária é coisa que esconjurar­á.

Ateado o fogo, sucede-lhe a azáfama para o debelar. As alterações anunciadas no modelo de supervisão, existente noutros países da União Europeia e vertida na respectiva legislação, com a segregação para uma nova entidade dos poderes de resolução e de avaliação de riscos, hoje na esfera do BdP, são o que são. Acrescenta­r mecanismos à supervisão poderá não fazer, no pântano em que nos movemos, pior ao mal que está. Mas ver nisso um passo importante para resolver um problema estrutural como se ouviu, donde não seria suposto ouvir, só pode ser confissão de rendição às regras europeias ou mera fezada. É possível que daqui decorra aquela sensação de que assim a coisa fica resolvida. Enganar-se-á quem quiser. Só com a recuperaçã­o da independên­cia do Banco de Portugal, com a libertação das regras da União Económica e Monetária e da União Bancária, e com o controlo público da banca se retomarão os instrument­os de soberania indispensá­veis ao desenvolvi­mento do país. Regressado à imagem da casa arrombada, se dirá que de pouco vale mudar de fechadura se a chave for parar ao arrombador.

A arrogância com que BCE e FMI reagiram tem um mérito. Desfaz ilusões sobre bem-intenciona­das elucubraçõ­es quanto às possibilid­a -des de ver o Banco de Portugal olhar para os interesses do país

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal