Donos disto tudo?
Atinta que já para aí correu será ainda pouca para que um dia se consiga escrever direito acerca do papel do Banco de Portugal e de quem o governa neste interminável e danoso semeio que o sector financeiro nos tem legado. Nada que se não soubesse e não se tivesse já vivido, mas agora regressado à boleia de uma reportagem que tendo como designação escolhida “Assalto ao castelo”, sem menos despropósito se poderia ter denominado “Casa arrombada, trancas à porta”.
A agitação que suscitou, os questionamentos que gerou sobre o que teria andado a fazer quem devia regular e as ilações políticas que daí deveriam decorrer, atingindo por inteiro Carlos Costa, accionou os inevitáveis sinais de alarme. Não fosse o diabo tecê-las ou, pior ainda, não começasse a subir à cabeça dos que neste canto da Europa estão – a ideia de que riscariam alguma coisa em matéria de decisão sobre o sector bancário e o Banco Central nacional, e aí surgiram BCE e FMI, tomando-se por donos disto tudo – a apressar-se a pôr a coisa na sua ordem.
É comum ouvir-se que quem manda pode, desde logo porque quem paga manda. Ainda que para os efeitos relacionados com a matéria aqui tratada – banca, respectivo regulador e os desmandos que produzem – a asserção sobre quem paga e quem manda não tenha a devida aplicação. No caso em presença, os que de facto pagam, o país e os que cá trabalham, pouco mandam.
A arrogância com que BCE e FMI reagiram tem um mérito. Desfaz ilusões sobre bem-intencionadas elucubrações quanto às possibilidades de ver o Banco de Portugal olhar para os interesses do país, submetido que está ao BCE e à União Bancária. Recoloca no devido sítio precipitadas conclusões que criticando o desempenho do governador do BdP, assim como que a meio caminho entre fazer-se de morto e uma hiperactividade em resoluções bancárias, iludem que o que ali vive é a solícita interpretação da estratégia desenhada pelo BCE.
Não se questiona com isto que Carlos Costa esteja há muito onde não devia estar. Não se estranha a re- condução que PSD e CDS lhe propiciaram conhecida a predilecção por escolhas compagináveis com a postura de fazedor de recados das orientações da troika para o país. Nem se absolve a displicência com que o governador se contenta com “fizemos o que se podia fazer”, ou a ligeireza com que se esconde sobre o “não se podia saber” mesmo quando outros, como o fez Honório Novo em plena comissão parlamentar no ano de 2013, o confrontaram sobre o que se conhecia sobre o BES e Ricardo Salgado. Mas só por ingenuidade ou distracção alguém se surpreenderá em ver nas resoluções do Banif ou do BES decisões separáveis de uma deliberada intervenção para favorecer a concentração bancária, a passagem para mãos do estrangeiro de alavancas centrais de uma política financeira.
Saúde-se a franqueza do governador do BdP em recente entrevista. A felicidade de ver transferidos para mãos não nacionais o BCP e o BPI, ou o entusiasmo com que olha para o assalto de um fundo especulativo ao Novo Banco são luz nesta imensa penumbra. A repetida invocação quanto à “independência” do cargo é daquelas mentiras vestidas de meia verdade. Independência face aos interesses nacionais e ostensiva dependência de quem a partir de Frankfurt dita ordens. O que a vida revela é que mais facilmente se veria tartarugas a correr ou elefantes a voar, apesar do promissor precedente testado pelo actual executivo em matéria de vacas voadoras, do que o Banco de Portugal a cuidar do que é nosso. Mesmo que o próprio governador se afirme “guardião da independência do Banco de Portugal”. Em socorro do visado se poderia aduzir que a garantia da independência do banco que dirige é inseparável da recuperação da soberania monetária, donde se cada um faz o que pode, pouco, como confessa, a mais não seria obrigado. Nem isso se aduzirá dado que soberania monetária é coisa que esconjurará.
Ateado o fogo, sucede-lhe a azáfama para o debelar. As alterações anunciadas no modelo de supervisão, existente noutros países da União Europeia e vertida na respectiva legislação, com a segregação para uma nova entidade dos poderes de resolução e de avaliação de riscos, hoje na esfera do BdP, são o que são. Acrescentar mecanismos à supervisão poderá não fazer, no pântano em que nos movemos, pior ao mal que está. Mas ver nisso um passo importante para resolver um problema estrutural como se ouviu, donde não seria suposto ouvir, só pode ser confissão de rendição às regras europeias ou mera fezada. É possível que daqui decorra aquela sensação de que assim a coisa fica resolvida. Enganar-se-á quem quiser. Só com a recuperação da independência do Banco de Portugal, com a libertação das regras da União Económica e Monetária e da União Bancária, e com o controlo público da banca se retomarão os instrumentos de soberania indispensáveis ao desenvolvimento do país. Regressado à imagem da casa arrombada, se dirá que de pouco vale mudar de fechadura se a chave for parar ao arrombador.
A arrogância com que BCE e FMI reagiram tem um mérito. Desfaz ilusões sobre bem-intencionadas elucubrações quanto às possibilida -des de ver o Banco de Portugal olhar para os interesses do país