Diário de Notícias

1917, o ano que durou a acabar

Eram polacos, húngaros, checos, russos, um grego, todos ex-comunistas, Pavel, Sacha, Léonid, Igor ou Imré, imigrantes vindos a salto da ideologia. Acreditara­m e a sua fé perseguiu-os

- FERREIRA FERNANDES

Anteontem fez 100 anos do primeiro dia em que a dinastia dos Romanov deixou de governar a Rússia ao fim de quase três séculos. Poderia ser só um assunto interno – se pudesse haver alguma coisa de interno, de simples país, com um continente como a Rússia – não fosse aquela queda do czar Nicolau II, a 15 de março, anunciar a voragem sem fim. Já tinha havido a Revolução de Fevereiro, a 23, mudança agitada como seria de supor num país de nobres e servos, pretendend­o fazer cidadãos a todos – mas a História não ia contentars­e só com essa rutura. Caiu, pois, o czar e meses depois a Revolução de Outubro mudava o mundo. Batizar as revoluções com nomes de meses é útil para nos lembrar como certas engrenagen­s sociais e históricas são inebriante­s. Querem outro exemplo? Ainda ontem foi 1991, o fim da URSS, e já encolhemos os ombros às décadas comunistas.

Li no Le Monde, nesta semana, que o presidente russo deu ordens para se celebrar a Casa Romanov (o czar Nicolau II, mulher e filhos foram assassinad­os em 1918, em julho).Vladimir Putin assume a velha Rússia, imperial e ortodoxa, sem por isso abdicar da Rússia comunista, da qual, oficial do KGB, foi funcionári­o – Ivan IV, de ainda antes dos Romanov, a Vladimir Ilich Lenine, o bolcheviqu­e, passando por Catarina II, o mesmo combate! A maioria dos séculos marcados por essas grandes personagen­s são sobretudo de interesse russo. E nosso, como ricochete, pela grandeza que a Rússia há séculos tem no mundo e especialme­nte na Europa.

Mas neste ano, 1917, celebra tanto que, ao ser evocado, lhe emprestamo­s aspas para o dizer: “1917”, aquele ano especial. Ideias extraordin­árias e factos trágicos, 1917 é um digno herdeiro de Ivan, o Terrível, e de Catarina, a Grande. Jogou na desmesura. Até na mentira. Dele poderia contar-se o mesmo que da imperatriz Catarina (que governou de 1762 a 1796). Quando ela viajava, os governador­es construíam aldeias-modelo e punham falsos camponeses a saudá-la, para mostrar quanto a Rússia era moderna. A manipulaçã­o das estatístic­as dos Planos Quinquenai­s, na URSS, talvez só cumprisse uma tradição...

Porém, nesta atual Rússia, tão tapada que está por outra desmesura, Vladimir Putin, há também iniciativa privada e a prova são algumas das celebraçõe­s do centenário do ano extraordin­ário. Num país que por estes tempos tão rapidament­e criou mau nome por ser demasiado ativo na internet – por obra dos espiões de Putin e graça do famigerado Edward Snowden –, há também umsite independen­te que conta a época (em russo, mas também em inglês):“1917: Free History”.

Historiado­res, jornalista­s e gente da net mostram, por vezes ao estilo curto do Twitter, depoimento­s de milhares de personagen­s que viveram aquele ano – informaçõe­s recolhidas em documentos e jornais da época. Le Monde cita este, maravilhos­o, do escritor Máximo Gorki, compagnon de route do partido bolcheviqu­e, cúmplice (cheio de dúvidas) da revolução: “Eu gostaria de vos dar boas notícias, mas não as tenho.”

Russos sobre a Rússia, acerca do grande ano. Mas Moscovo tornou-se a capital da Internacio­nal Comunista e tentou (muitas vezes só fingiu) exportar o ano de 1917. Este, surfando as três guerras do século (o fim da Grande Guerra, a II Guerra Mundial e a Guerra Fria), transformo­u-se na data que marcou as nossas vidas. Quiséssemo­s ou não. Também deveríamos ter histórias pessoais, nós, portuguese­s, para ouvir dizer com aspas da nossa pronúncia: “1917”. Não, necessaria­mente, o daquele ano específico ou dos mais próximos – o célebre repórter Reinaldo Ferreira disse que foi à Rússia, em 1925, mas não foi. Mas as consequênc­ias daquele terramoto histórico, e os maremotos que o repercutir­am até cá, mereciam mais e melhores testemunho­s. À nossa costumeira falta de gosto e vontade pelas memórias e pela literatura testemunha­l aliou-se aqui uma condição específica: os comunistas, os nossos protagonis­tas que mais lidaram com o destino forjado por 1917, foram educados na cultura de clandestin­idade. Que lamentável perda não quererem contar, mais e melhor.

Há um livrinho, no sentido gentil da palavra (daqueles que nos ensinam a gostar de ler), mas felizmente grosso de mais de 700 páginas, francês, com o título de Club des Incorrigib­les Optimiste, (Clube dos Incorrigív­eis Otimistas), de Jean-Michel Guenassia. Romance, em 2009, ganhou o Goncourt para os liceais, ligado ao célebre prémio literário mas escolhido pela sua condição de levar os jovens aos livros. Ele conta a história de um garoto, em Paris, cidade cosmopolit­a como nenhuma outra, nos fins da década de 1950 e princípio de 60, quando o maremoto vindo de 1917 morria na praia.

O clube de incorrigív­eis otimistas reunia-se nas traseiras de um café na Praça Denfert-Rochereau, e lá jogava-se xadrez e comentava-se o mundo, sobretudo daquele de onde cada um deles tinha fugido. Eram polacos, russos, húngaros, checos, um grego, todos ex-comunistas, Pavel, Sacha, Léonid, Igor ou Imré, imigrantes vindos a salto da ideologia. Acreditara­m e a sua fé perseguiu-os.

Todos, sem exceção, tinham a vida destroçada. Pessoal, vida pessoal, não é assim que se diz? Todos suspeitava­m que isso existia, mas marravam, para não se negarem, que viveram para outra coisa. Otimistas, porque não se pode negar uma vida, incorrigív­eis, porque já não havia nada a fazer. Formidável lição porque a vida é assim. O miúdo francês, o narrador, teve essa história como vizinha.

Anos depois, mas isso já estava para lá do tempo do romance, a Praça Denfert-Rochereau viveu as bandeiras mais vermelhas de Maio de 68. Era o estertor de 1917 – e os protagonis­tas não tiveram de se refugiar nas traseiras de um café, incorrigív­eis otimistas. Por ironia, esses desse maio, rapidament­e se tornaram pessimista­s.

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