“Geringonça é um exemplo de governo que funciona”
O seu livro começa com o Ultimato britânico. Foi o princípio do fim da monarquia portuguesa e do Império português? O Ultimato de 1890 surge como data-chave, que marca não só o “Outono da Monarquia e a Primavera da República” mas também o fim do sonho de um “novo Brasil em África” simbolizado pelo mapa cor-de-rosa. A questão do ultramar é central no espaço público e no imaginário coletivo, pelo menos até ao 25 de Abril e à transição democrática. Esse passado glorioso ainda marca o presente dos portugueses? Ainda há uma saudade desses tempos? O passado dos Descobrimentos, a memória do infante D. Henrique, de Vasco da Gama, de Camões, ou o mito sebastianista testemunham a centralidade da epopeia ultramarina e de uma relação com o mundo singular. A história nacional vai muito além do “estreito retângulo” continental europeu, alimentando de forma duradoura, clara até ao 25 de Abril, uma relação ambivalente com a grandeza, com o medo do declínio como pano de fundo. Descreve o Estado Novo como uma ditadura tecnocrática, nacionalista e imperial, católica, tradicionalista e conservadora. São características que explicam a sua longevidade? Essas características explicam em parte esse recorde de longevidade à escala europeia, sublinhando aqui o papel-chave do sistema opressivo e do “governo pelo medo”. Mas é preciso ter em conta a habilidade tática no cenário internacional, na II Guerra Mundial e na Guerra Fria, bem como a astúcia de Salazar para levar “os portugueses a viver habitualmente”, como dizia nos anos 1930, para se revelar, no final, “mestre na arte de durar”. O Estado Novo é muito diferente dos outros fascismos europeus e também do regime de Pétain em França? Atraído pelo “campo magnético dos fascismos” nos anos 1930, o Estado Novo acaba por se demarcar – e isso é motivo de debate entre historiadores – nas quesregime
Benoît Hamon e Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, em Lisboa, a 17 de fevereiro tões relativas à mobilização das massas, à personalidade do ditador, à relação com a modernidade, bem como à natureza do nacionalismo, virado para o ultramar, pacífico e não expansionista. O regime de Vichy é o que se lhe assemelha mais, com os fundamentos maurrassianos [do nacionalismo integral de Charles Maurras], dimensão ultraconservadora e contrarrevolucionária, enfim, o lema “trabalho, família, pátria”. Com a Revolução dos Cravos, Portugal abre-se à Europa. Hoje, com a crise financeira, a Europa tornou-se sinónimo de dificuldades para muitos portugueses. É uma reação justa? É uma reação que contrasta com a paixão dos primeiros tempos, os da adesão
O historiador francês Yves Léonard nos anos 1980. Mas é uma reação compreensível, perante um discurso dominante que durante muito tempo fez da Europa – sem se acompanhar da pedagogia e dos alertas necessários – um horizonte inultrapassável, um eldorado dos tempos modernos. A cura de austeridade imposta pela troika entre 2011 e 2014 revelou os limites deste discurso. A relação de Mário Soares e François Mitterrand, dois amigos socialistas, foi muito importante para as ambições europeias de Portugal. Esta proximidade ainda existe entre os dois países? Esta amizade marcou um período determinante, sobretudo na fase da adesão de Portugal à Europa. Mas a proximidade continua forte ao nível político, económico, comercial e cultural. Por outro lado, há uma forte comunidade portuguesa em França, enquanto Portugal atrai fluxos crescentes de turistas franceses, com alguns milhares, nos últimos anos, a instalar-se aí. Pode dizer-se que em França como em Portugal a esquerda procura um novo Mitterrand ou um novo Soares? Eram duas personalidades excecionais, ferozes defensores da ideia europeia, ambos presidentes “já para o tarde”, após longos combates políticos, contra a ditadura salazarista para Soares, contra o › Especialista na história contemporânea de Portugal. › Professor na Sciences Po. › Além do livro que amanhã lança, Yves Léonard é autor de outras obras, por exemplo Salazar e os Media. Histoire du Portugal Contemporain gaullista para Mitterrand. Duas figuras de um século XX nada avarento em tragédias humanas e guerras. Dois grandes democratas que partilhavam uma certa ideia de Europa, marcada pelo humanismo e pela paz. Duas grandes figuras tutelares de uma esquerda europeia à procura hoje de um novo fôlego. A primeira volta das presidenciais francesas é no dia 23. Há semanas, o candidato da esquerda Benoît Hamon esteve em Portugal para se inspirar na nossa fórmula de governo. A geringonça é um exemplo para outros países? É um belo exemplo de uma governação que funciona, ao mesmo tempo atípica à escala europeia e singular se olharmos para a história política portuguesa desde o 25 de Abril. Recebido pelo primeiro-ministro português, pelo presidente da Câmara de Lisboa e por representantes do Bloco de Esquerda, Hamon saudou esta geringonça – ele próprio usou o termo em português – como um sucesso, mesmo não sendo facilmente imitável, como o mostrou o desenrolar da campanha presidencial em França, onde os apelos à união dos candidatos de esquerda não foram ouvidos. A história recente de Portugal explica porque não temos extremismos, nem de esquerda nem de direita, ao contrário de muitos países europeus, como a França? Explica em parte o facto de Portugal ser caso singular à escala europeia, até exemplar. Singular na medida em que, num contexto propício de crise económica e social, a direita radical continua confinada a uma franja residual do eleitorado, ao contrário do que se passa em França com a ameaça da Frente Nacional, e onde os discursos populistas não têm a mesma audiência que têm na Itália. Um caso singular mas, aqui também, dificilmente transponível, de tal forma está ligado ao quadro institucional (flexibilidade das instituições nascidas com a Constituição de 1976) e político (sistema bipolar de alternância, ameaçado pelo cansaço mas que se soube renovar com a geringonça) e também à herança e à memória do 25 de Abril, vivido como ato fundador da democracia, ao papel social da história contemporânea, enfim, aos particularismos de um país na periferia da Europa, afastado dos grandes fluxos de migração e de refugiados do Mediterrâneo e da Europa Central, um país que continua a ser muito de emigração. Um país cuja história é mundial, mas onde é como se o mundo tivesse ficado à porta durante muito tempo.