Nove títulos para redescobrir o cinema de Mizoguchi
Obra do mestre japonês está de volta às salas portuguesas: são nove filmes, cinco deles inéditos nos circuitos comerciais
O lançamento de nove filmes do japonês Kenji Mizoguchi (1898-1956) no circuito comercial português vem confirmar que a reposição, por vezes a estreia absoluta, de grandes referências clássicas voltou a ser um dado essencial na dinâmica das salas escuras.
A exibição dos filmes de Mizoguchi inicia-se na quinta-feira, em Lisboa (Nimas), com Contos da Lua Vaga (1953), Os Amantes Crucificados (1954) e A Mulher de Quem Se Fala (1954), este último nunca lançado nas salas comerciais. Numa segunda fase, a partir de 11 de maio, serão apresentadas mais duas reposições – O Conto dos Crisântemos Tardios (1939) e Rua da Vergonha (1956) –, a par dos comercialmente inéditos Festa em Gion (1953), A Senhora Oyu (1951), O Intendente Sansho (1954), e A Imperatriz Yang Kwei Fei (1955). Nessa data, o ciclo arranca no Porto (Teatro Municipal do Campo Alegre), seguindo-se, entre outras cidades, Coimbra, Braga, Setúbal e Figueira da Foz.
Durante muito tempo, a par de Akira Kurosawa (1910-1998), Mizoguchi funcionou como símbolo universal da própria “ideia” de cinema japonês. Para várias gerações, Contos da LuaVaga (1953) foi mesmo um clássico capaz de condensar um ideal de pureza formal. Basta recordar a sua posição na prestigiada lista dos “melhores filmes de sempre”, promovida de dez em dez anos pela revista Sight & Sound, do British Film Institute: em 1962, surgiu em quarto lugar; na votação de 2012, ficou na 50.ª posição (o título japonês mais votado, em terceiro lugar, é Viagem a Tóquio, também de 1953, realizado por Yasujiro Ozu).
A paixão por um realismo à flor da pele será a maneira mais linear, embora redutora, de definir o universo de Mizoguchi. Desde O Contos dos Crisântemos Tardios, um drama do meio teatral em finais do século XIX, até A Imperatriz Yang Kwei Fei, nos bastidores do poder imperial no século VIII, deparamos com uma obsessão do detalhe apostada em intensificar, precisamente, o efeito realista.
Títulos como os citados, ou ainda O Intendente Sansho, centrado em conflitos do período feudal, te- rão contribuído para que, por ve- zes, Mizoguchi fosse identificado como especialista em “reconstituições” históricas. Na verdade, através da teatralidade dos ambientes, aquilo que o interessa é sempre, em última instância, a rede de forças e desejos que vai minando os valores sociais de cada momento.
O retrato de uma casa de gueixas em A Mulher de Quem Se Fala, porventura a maior revelação deste ciclo, pode servir de modelo. O desassombro com que Mizoguchi expõe o quotidiano de um bordel funciona como uma poderosa maquinaria dramática, dispensando qualquer visão “poética”, muito menos “turística”, típica de alguns olhares ocidentais.
Há óbvias relações com a austera visão da prostituição que encontramos em Rua daVergonha, título final da sua filmografia. A crueza das relações não exclui, antes parece atrair, o assombramento de algumas histórias (observe-se o fantasma que circula por Contos da LuaVaga). No limite, entre o visível e o invisível, Mizoguchi é um genuíno autor trágico.