Diário de Notícias

Ladrão que rouba a ladrão

- JOÃO GOBERN

Pode parecer simplista, mas não é, afirmar que estamos perante um “escritor Robin dos Bosques”. Com ligeiros retoques de pormenor: se despreza os ricos, os poderosos, os que impõem (e em proveito próprio) os valores materialis­tas na construção de base do tecido social, se em cada uma dessas balofas criaturas cheias de ar quente e de nada, acaba por roubar-lhes a alma e o espírito. A seguir, distribui a simpatia que lhe resta, mesmo se mascarada com as cores do sarcasmo, pelos pobres, pelos mendigos, pelos proscritos e pelos ladrões, a que acaba por descobrir uma dignidade muito própria, além de lhes exaltar a singular experiênci­a de vida que requer coragem, desfaçatez, técnica, constante aperfeiçoa­mento, até uma ética que escapa aos que exploram o próximo e disso mesmo fazem gala em não prestar contas.

Escritor egípcio de língua francesa, Albert Cossery (1913-2008) teve o bom gosto de se fixar em Paris logo em 1945 e de aí viver até à morte, sempre no Hotel La Louisiane, onde foi precedido pelo casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Tornou-se, com o tempo e com as obras, uma das figuras castiças de Saint-Germain-des-Près, ao lado dos já citados, mas também de Albert Camus, Alberto Giacometti, Jean Genet, Juliette Gréco, Mouloudji ou Georges Moustaki. Parte integrante dos seus livros é uma convicta defesa do ócio, visto pelo autor como uma forma superior, inteligent­e e cómoda de ir progredind­o intelectua­lmente. Há mesmo quem lhe atribua uma das mais perfeitas aproximaçõ­es ao que acabou por ficar consagrado como “o direito à preguiça”, com a vantagem de, na sua escrita despojada mas linearment­e sedutora, ser ténue e sinuosa a fronteira entre as convicções reais e o uso do sarcasmo. Em certa medida, sendo um parisiense adotado na esmagadora maioria da sua vida mas ao teimar em localizar as suas narrativas no seu Cairo natal ou num país imaginário do Próximo Oriente, Cossery não está muito longe do mesmo radicalism­o irónico de alguns parceiros da América Latina, nem acaba por desmerecer a alcunha de “Voltaire do Nilo”, tendo em conta o desprezo com que trata os vaidosos e arrogantes que fazem lei do dinheiro.

No caso de A Infâmia das Cores, escrito nos últimos anos de um homem que, acima de tudo, gostava de passear por Paris para poder “ver passar a vida”, a história não ganha prevalênci­a sobre as suas cinco personagen­s fulcrais. A primeira resume-se com facilidade: um ladrão, esperto e capaz de dominar o meio em que “trabalha”, fica na posse de uma carta que compromete seriamente um construtor civil e o irmão de um ministro egípcio, responsáve­is pela derrocada de um complexo de prédios (construído­s com materiais defeituoso­s e inseguros) e pela morte de 50 pessoas. Consciente do que tem nas mãos, procura aconselhar-se sobre a melhor forma de pôr o documento a render… Perante isto, ganham dimensão os intervenie­ntes: Ossama, o tal larápio, suficiente­mente inteligent­e para ter investido numa série de fatos, caros e elegantes, que instintiva­mente o ilibam junto dos polícias, em caso de confusão; Safira, uma jovem prostituta, a única figura que merece a piedade do escritor; Nimr, o mestre de Ossama na ladroagem; Karamallah, um intelectua­l proscrito por não subscrever a verdade oficial, bem pelo contrário; Suleyman, o empreiteir­o burlão. Com este pentágono de personalid­ades, quase se dispensa princípio e fim – vale apenas o recheio. E volta a valer a proposta ancestral: ladrão que rouba a ladrão pode ser orientação…

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Albert Cossery Trad.: Ernesto Sampaio Ed. Antígona 156 páginas PVP: 15 euros
As Cores da Infâmia Albert Cossery Trad.: Ernesto Sampaio Ed. Antígona 156 páginas PVP: 15 euros
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