Na Justiça não se toca
Os dados do estudo são esmagadores num assunto que caminha sobre cacos de vidro. Em 137 inquirições a crianças vítimas de abuso, a grande maioria das perguntas feitas pelos juízes que conduziam a audição foi considerada dirigida, direcionada ou de escolha forçada. São, no fundo, o tipo de perguntas que podem inquinar o testemunho das crianças, retirar-lhe credibilidade ou conduzir a resultados pouco fiáveis. Só 3% das questões nos 137 casos analisados entre 2009 e 2014 eram perguntas abertas, justamente as consideradas mais ajustadas a estas situações pelos psicólogos forenses.
O DN dá-lhe hoje conta de uma experiência. Na comarca do Porto já são os psicólogos forenses que dirigem estas inquirições a crianças, com a presença de advogado, procurador e juiz numa sala ao lado, separada por um vidro espelhado. A experiência tem tido bons resultados num histórico já com 70 casos nos últimos dois anos. Reação da corporação? De uma juíza ouvida pelo DN? Que não pode ser, que é ilegal, que vai ser preciso alterar o Código do Processo Penal e que é inaceitável que os juízes percam essa competência. Não para de espantar a resistência à mudança de algumas corporações. Neste caso nem sequer estamos a falar de uma decisão política sem sustentação técnica ou científica – são frequentes –, mas de um ligeiro acerto no sistema, baseado numa investigação e em conclusões de um estudo científico. Que do lado dos juízes não haja, aparentemente, preocupação com a qualidade dos testemunhos recolhidos em processos que envolvem crianças vítimas de abuso, mas antes a proverbial defesa de classe, é algo que nos devia preocupar.
Este caso fez-me lembrar um almoço com um magistrado, há uns anos. Depois de passarmos algumas horas a falar de um ou outro caso mais mediático com figuras da política e da alta finança, disse-lhe que, das duas uma, ou desses casos saía uma acusação firme, com provas sólidas, e aí teria de haver uma profunda reflexão sobre que políticos temos andado a eleger e que podemos melhorar na regulação bancária – aqui o meu companheiro de almoço concordou comigo sem reservas –; ou, se não se chegasse à fase de acusação ou se as acusações não passassem de crimes menores, então aí teríamos de fazer uma reflexão séria, enquanto comunidade, sobre o estado da Justiça e o que mudar no sistema. A resposta, aqui, foi bem diferente: “Na Justiça está tudo bem, não há nada para mudar.”