Diário de Notícias

A fazer ondas

- ALISON ROBERTS

Quando Michael Howard, ex-líder dos conservado­res de Theresa May, disse à Sky News que esperava que ela “mostrasse a mesma determinaç­ão” em relação a Gibraltar que Margaret Thatcher mostrou quando a Argentina invadiu um grupo de ilhas no Atlântico Sul, a declaração provocou mais ondas do que um navio de guerra. O ministro espanhol dos Negócios Estrangeir­os, Alfonso Dastis, disse ter ficado “um pouco surpreendi­do” com os comentário­s de “um país conhecido pela sua compostura”. No Reino Unido, Howard foi acusado de defender a “diplomacia das canhoneira­s” – política conduzida com o uso ou ameaça de força militar, um termo associado com os tempos do Império. Na verdade, Howard não disse que o Reino Unido avançaria para a guerra pelo pequeno promontóri­o na costa sul de Espanha, como o próprio Dastis observou. Mas, como político experiente que é, sabia bem qual seria o impacto das suas palavras, e May optou por não se distanciar delas.

Previsivel­mente, os tabloides aproveitar­am a deixa. Na terça-feira, a primeira página de The Sun recuperou uma das suas mais famosas manchetes anti-UE de 1990, “UpYours Delors”, agora como “UpYours, Senors” (com a palavra señores [senhores] convenient­emente mal escrita).

Os comentário­s de Howard foram uma resposta ao projeto de diretrizes da UE para as negociaçõe­s sobre o brexit, que dão a Espanha um veto de facto sobre se um futuro acordo se aplica a Gibraltar. O governo do Reino Unido foi mais diplomátic­o (mas já sem canhoneira­s), mas descreveu essa posição como “totalmente inaceitáve­l”. Num telefonema ao primeiro-ministro de Gibraltar, May assegurou-lhe que o território – sob o domínio britânico desde 1713 – nunca seria entregue a Espanha contra a vontade do seu povo.

Na verdade, o projeto da UE não diz nada sobre a ligação de um acordo do brexit com a soberania, e Espanha sabe que retomar Gibraltar é uma tarefa difícil mesmo com um governo mais flexível em Londres. Afinal, em 2002, Madrid e Londres mantiveram conversaçõ­es sobre uma soberania partilhada, ideia promovida pelo então ministro dos Negócios Estrangeir­os britânico, Jack Straw. Numa visita a Gibraltar, Straw disse aos habitantes que isso tornaria o território mais estável e próspero. Mas ele foi insultado, apodado de “traidor” e empurrado na rua por multidões irritadas. Um referendo realizado pouco tempo depois em Gibraltar – com 87% de participaç­ão – viu 98% dos votantes a rejeitarem a cossoberan­ia. Embora não vinculativ­o, forçou o Reino Unido a compromete­r-se a consultar os gibraltino­s no futuro, e levou a mais autonomia governativ­a. A verdade é que, como Straw salientou ao condenar “o absurdo jingoísmo do séc. XIX” de Howard, a frase “diplomacia de canhoneira” teve origem num incidente que envolveu um original de Gibraltar.

Foi em 1850 que o governo britânico enviou navios da Armada Real para bloquear o Pireu, depois de a Grécia se ter recusado a compensar um súbdito britânico, David Pacifico, cuja casa tinha sido saqueada por uma multidão. Os manifestan­tes ficaram furiosos com a proibição da queima de uma efígie de Judas Iscariotes, tradiciona­l na Páscoa – imposta pelo governo grego para não ofender um financeiro judeu – e Pacifico foi atacado por ser um proeminent­e judeu local. Pacifico, de facto, cresceu em Portugal, para onde os seus pais se mudaram pouco tempo depois de se casarem na sinagoga sefardita de Londres; foi cônsul-geral de Portugal em Marrocos e na Grécia. Por vezes era vago em relação às suas origens: a determinad­a altura afirmou ser cidadão espanhol. Mas em 1850 os benefícios de ser britânico pareciam claros: o país realmente “dominava as ondas”, nas palavras da canção patriótica Rule,Britannia! Depois da mediação de França e da Rússia, Pacifico reduziu as suas exigências, e a Grécia pagou. Em Londres, a opinião dividia-se sobre o uso da força, mas o Parlamento aprovou uma moção afirmando o direito dos cidadãos britânicos a pedirem ajuda em qualquer lugar, um princípio no qual os gibraltino­s de hoje esperam poder confiar.

Depois dos comentário­s incendiári­os de Howard, foi a Espanha que enviou os “canhoneiro­s”, na realidade um barco de patrulha que, segundo Gibraltar, fez uma “incursão ilegal” antes de ser confrontad­o por um navio britânico. Incidente bastante frequente, uma vez que Espanha reivindica soberania sobre estas águas.

Na semana passada, Peter Hain, que como ministro da Europa de Straw negociou o plano de 2002, pediu ao governo do Reino Unido que considere ressuscita­r esse plano. Sob a cossoberan­ia, explicou, o estatuto de Gibraltar seria parecido com o de Andorra (onde o presidente de França e o bispo da Catalunha são “copríncipe­s”). Enquanto isso, os diplomatas espanhóis observavam “com um regozijo calmo” o embaraço do governo britânico perante as diretrizes da UE, o que pode, no final, servir principalm­ente como pressão sobre o território para elevar as suas taxas de impostos ultrabaixa­s.

Espanha e Reino Unido não estão prestes a entrar em guerra, mas este episódio mostra como, na Europa e em outros lugares, as preocupaçõ­es do século XIX com a força militar e os equilíbrio­s de poder estão de volta ao primeiro plano.

O episódio de Gibraltar mostra como as preocupaçõ­es do século XIX com a força militar e os equilíbrio­s de poder estão de volta ao primeiro plano

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal