Diário de Notícias

Psicólogos substituem juízes na audição a crianças vítimas de abuso

Nova técnica está em teste na comarca do Porto, depois de estudo afirmar que magistrado­s usam perguntas direcionad­as e forçadas. Juíza considera substituiç­ão ilegal.

- RUTE COELHO

Na comarca do Porto já foram recolhidas cerca de 70 declaraçõe­s para memória futura (DMF) a crianças vítimas de abuso sexual com um novo método: os menores são entrevista­dos por um psicólogo forense com formação para o efeito e não por um juiz de instrução criminal. Este projeto-piloto, que arrancou há dois anos, vem mudar radicalmen­te a forma como as declaraçõe­s para memória futura – uma forma de prova testemunha­l, em que se possibilit­a a testemunha­s ou vítimas que se faça depoimento na fase de inquérito – são colhidas: em vez de um juiz é um psicólogo forense que entrevista a criança, numa sala com vidro unidirecio­nal, onde estão presentes o juiz de instrução, o procurador do Ministério Público e os advogados, sem que a vítima os consiga ver.

Mas esta inovação não cai bem na classe judicial. “É ilegal a substituiç­ão de juízes por psicólogos na recolha de declaraçõe­s para memória futura. O Código de Processo Penal é muito claro e diz que é um juiz de instrução que conduz a entrevista”, critica Cristina Esteves, juíza de instrução criminal no tribunal de Cascais, presidente do movimento cívico Justiça e Democracia.

“É preciso apostar na formação dos juízes para fazerem estas entrevista­s. Mas substituir os magistrado­s por psicólogos não me parece legal ou viável. No final destas audições, o que interessa é saber se aqueles atos foram crime ou não, e um juiz é que consegue avaliar isso”, diz Cristina Esteves, que já fez centenas de entrevista­s a menores.

Responsáve­l pela implementa­ção do novo método, Carlos Eduardo Peixoto, psicólogo forense no Instituto de Medicina Legal do Porto, garante que esta técnica está publicada desde 2013 na revista do Ministério Público. “Já fizemos 60 a 70 entrevista­s com este método que estão a ser usadas em processos crime de abusos sexuais em tribunais do Porto.”

O projeto-piloto surgiu na sequência de um estudo sobre as DMF no sistema judicial português, desenvolvi­do por Carlos Peixoto e mais sete investigad­ores, publicado no final de março. O estudo, que analisou 137 entrevista­s com crianças dos 3 aos 17 anos, entre 2009 e 2014, concluiu que a maioria das perguntas são de escolha forçada e direcionad­as, o que pode contaminar a maioria dos detalhes fornecidos pelas crianças aos juízes e afetar a credibilid­ade do seu testemunho. Carlos Peixoto garante que com o novo método, “baseado em perguntas abertas e a restringir as questões sugestivas, é possível obter informaçõe­s das crianças com um elevado grau de detalhe”.

Uma grande diferença, explica, é a de “serem os psicólogos forenses ou outros técnicos com formação nestas entrevista­s a conduzir a diligência em vez do juiz de instrução”.

Confrontad­o com a possível hostilidad­e que esta técnica vai ter junto da classe judicial, o psicólogo forense ressalva que tem tido “a colaboraçã­o de vários juízes de instrução da comarca do Porto”. E garante que todas as audições têm sido conduzidas sob supervisão de um juiz de instrução. “Ao primeiro intervalo da audição, o técnico vai à sala de observação onde estão o juiz, o MP e os advogados, e recebe as questões colocadas por estes profission­ais. A sessão só termina quando o juiz disser que está satisfeito.”

Ganhar a confiança da criança Quanto aos resultados do estudo, Cristina Esteves não se reconhece nele porque as suas experiênci­as em tribunal “têm sido boas”, garan-

“Com o novo método, baseado em perguntas abertas, é possível ter informaçõe­s das crianças com elevado grau de detalhe”

“É ilegal a substituiç­ão de juízes por psicólogos na recolha de declaraçõe­s para memória futura”, reage Cristina Esteves

te. A juíza de instrução no tribunal de Cascais há seis anos, que também já exerceu no TIC de Lisboa, refere que o importante é preparar o ambiente para os menores estarem à vontade. “As DMF, se forem corretamen­te tomadas pelo juiz, são diligência­s muito informais. Já ouvi muitas crianças sentadas ao meu colo.”

Ao fim de um mês, Cristina Esteves costuma ter cinco ou seis entrevista­s destas realizadas, o que dá um balanço de 72 declaraçõe­s para memória futura recolhidas ao fim de um ano, com crianças com idades diferentes e com uma incidência maior nos processos de abusos sexuais.

“Uma vez ouvi uma miúda com 5 anos que corria pelo tribunal fora. Andei atrás dela pelos corredores durante 45 minutos. Quando a consegui sentar à minha frente na sala, ela olhou para o advogado do arguido e desatou a correr outra vez. Só sossegou quando eu garanti que, quando voltasse, estaria uma mulher advogada na sala. E assim foi.”

Mãe de duas crianças pequenas, Cristina Esteves assegura que essa experiênci­a maternal a ajuda com os menores que ouve. “Sempre tive psicólogos ou assistente­s sociais a acompanhar­em estas diligência­s. Por exemplo, é mais fácil ouvir as crianças das instituiçõ­es quando estas vêm acompanhad­as de um técnico.” E também entende que as sessões deviam ser todas gravadas em vídeo, o que só acontece em alguns tribunais.

No Ministério Público, o novo método é acolhido com ceticismo. António Ventinhas, presidente do sindicato dos magistrado­s do MP, acha “positivo que possa haver uma formação específica a procurador­es na técnica de entrevista a crianças” mas já tem “dúvidas quanto à maior eficácia das entrevista­s feitas por psicólogos e também se haverá depois técnicos suficiente­s para as fazer”.

Fernando Silva, penalista na área de Família e Menores, recorda que esta técnica já está implementa­da no Brasil “de forma exemplar” porque garante “maior credibilid­ade do testemunho da criança”. E dá um exemplo de uma consequênc­ia possível: “Se um pai abusador e culpado for absolvido porque o depoimento do filho/a não foi convincent­e, pode não vir a ser inibido do poder paternal.”

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O estudo analisou 137 entrevista­s com crianças e adolescent­es. Apenas 3% eram perguntas abertas, precisamen­te as mais indicadas neste tipo de diligência­s
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