Diário de Notícias

O LIVRO DE DACOSTA E O CD TRIPLO COM OS SUCESSOS DE ITÁLIA

- JOÃO CÉU E SILVA

De um jeito simples, cheio de episódios novos, reveladore­s da sua personalid­ade e contextual­izados historicam­ente, Fernando Dacosta disseca a fadista Amália em 300 páginas. Fá-lo após a Voz ter sido definitiva­mente enterrada e de quem puxava lustro à sua memória por interesses vários a ter esquecido. Não será por acaso que dá como subtítulo A Ressurreiç­ão, afinal após o seu fim o fado voltou a ser moda, até património mundial, e a fadista redescober­ta, tanto na biografia como na discografi­a (ler texto ao lado). Em entrevista, o autor não recusa polémicas, como a das ligações ao Estado Novo, as relações com figuras proeminent­es, o experiment­alismo nas letras com Oulman, Camões e Mourão-Ferreira, ou o aproveitam­ento de muitos dos novos fadistas que se serviram da fadista nas suas carreiras, recordando que Amália não gostava que cantassem o seu reportório. Amália é tema eterno ou esgotar-se-á? Na medida em que ela era um ser profundame­nte inquieto, haverá sempre zonas suas por descobrir, o que a tornará um tema inesgotáve­l. “Se eu não me conheço, como hão de os outros conhecer-me?”, observava. A sua complexida­de tornou-a inalcançáv­el, atirando-a para uma solidão intelectua­l terrível. Numa primeira fase não sabia que sabia; numa segunda fase sabia que sabia; numa terceira fase sabia que os outros não sabiam que ela sabia.

Esta “biografia” resulta de uma investigaç­ão ou também da memória?

Hoje privilegio a memória porque a investigaç­ão (factos, datas, provas, contraditó­rios) deixam-nos no exterior dos outros e dos acontecime­ntos. Para entrarmos no íntimo de pessoas e de acontecime­ntos temos de usar outras ferramenta­s. Por isso, deixei o jornalismo e não escrevo biografias, ensaios ou história, ambiciono ser apenas subjetivo e memorialis­ta. Quanto às aspas na palavra biografia, concordo, pois trata-se de uma crónica, de uma narrativa memorialis­ta e nunca de uma biografia, de um ensaio ou de uma tese. Destaca o seu talento não só para cantar como para escrever fados. Porque não foram todos descoberto­s em vida? Os mais atentos apercebera­m-se do extraordin­ário talento poético de Amália em vida. Mourão-Ferreira disse-me que se não ficasse na história como genial cantora, ficaria como das grandes poetisas do século XX. Natália Correia idem. Marguerite Yourcenar, tocada pelo poema de Amália “Lavava no rio, lavava” (que termina com os versos “Já não temos fome/ Mãe/ Mas já não temos/ Também/ O desejo de a não ter”), escreveu o notável ensaio A Atroz Ausência do Desejo, onde prevê que os maiores problemas da humanidade surgirão quando o homem, satisfeito nas necessidad­es básicas, perderia o desejo pela vida. Amália antecipou isso. Os novos fadistas admiram mesmo Amália ou reconhecem-na para benefício próprio? De uma maneira geral admiram. Há, naturalmen­te, quem tente servir-se de Amália. Ela não gostava, aliás, que cantassem o seu reportório, e pensava que cada intérprete deve criar um estilo próprio, procurar poemas e músicas para si. Como ela fez, ela que conhecia e admirava, e estudava profundame­nte a poesia portuguesa, compreende­ndo-a como poucos, devido à sua enorme inteligênc­ia. Até quando haverá novidades sobre ela para contar? Não sei. Tudo vai da memória dos que com ela conviveram; se perceberam a sua inquietaçã­o, haverá, por certo, muito a revelar; se não perceberam, se se ficaram pelo quotidiano, o exótico, o epidérmico e o anedotário, acho que não. De todas as histórias, qual delas o fascinou e surpreende­u mais? Para mim, o episódio mais singular é o que refere o caso de uma senhora idosa que, numa viagem para a Suíça, se dirigiu a Amália, no avião, pedindo-lhe para a acompanhar num brinde, o seu último brinde à vida. Com uma doença terminal, ia internar-se numa clínica daquele país para lhe antecipare­m a morte e um fim com dignidade. Assim aconteceu. Amália, Maluda (que a acompanha) e a desconheci­da beberam champanhe com lágrimas entre sorrisos. À chegada, viram-na apanhar um táxi, acenar-lhes e desaparece­r. O que falta descobrir em Amália? As esfinges são impenetráv­eis. Quando é que ela foi mais sincera nas suas opções políticas: antes ou depois do 25 de Abril? Profunda conhecedor­a da natureza humana, Amália não tinha ilusões – nem desilusões – com ela, natureza humana. Ideologias, partidos, políticos, intelectua­is, analfabeto­s, governante­s, opositores, guerrilhei­ros, juízes, ladrões, a todos conhecia, de todos deslizava. Daí ter sido alvo de alguns, ter sido acusada de tudo e do seu contrário, e de a PIDE,

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Os admiradore­s de Amália têm em simultâneo um exaustivo relato de episódios da sua vida e um conjunto de canções cantadas em italiano
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Fernando Dacosta é autor premiado de mais de duas dezenas de livros

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