Kidman lidera elenco do western feminista de Sofia Coppola
No seu novo filme, The Beguiled, Sofia Coppola revisita as componentes clássicas do western, desta vez em tom feminino
Entre as produções dos estúdios americanos em 2016, qual a percentagem de filmes dirigidos por mulheres? A resposta é de uma frieza desarmante: 4,2%. Foi Nicole Kidman a citar esse número, em Cannes, na conferência de imprensa do filme The Beguiled, de Sofia Coppola. E fê-lo em tom militante, sublinhando que se trata de um dado que “importa dizer e continuar a dizer”.
Nas contas do festival, é um dos três títulos da competição com assinatura feminina – os outros são Hikari, da japonesa Naomi Kawase, e YouWere Never Really Here, da escocesa Lynne Ramsay. Em qualquer caso, o seu calculado e sedutor feminismo provém do paradoxo simbólico que se estabelece na comparação com o filme homónimo realizado por Don Siegel em 1971 (entre nós: Ritual de Guerra), com Clint Eastwood no único papel masculino (agora entregue ao pouco expressivo Colin Farrell).
Para Sofia Coppola, não se tratou tanto de fazer um remake, antes de regressar às componentes dramáticas do romance de Thomas Cullinan sobre um soldado da União gravemente ferido, em plena Guerra Civil americana, e salvo pelas habitantes de um internato feminino, algures no Sul profundo. Nicole Kidman interpreta a dirigente da instituição (era Geraldine Page no filme de 1971), com Kirsten Dunst e Elle Fanning nos outros papéis principais. Cedo se percebe que o salvamento do soldado é apenas a componente humanista que gera a aproximação do grupo de mulheres – entre as perspetivas de fuga dele e, por parte delas, a vontade de o entregar ao exército sulista, vai-se gerando uma teia de tensões com perturbantes elementos sexuais.
Se é verdade que o filme consegue consumar a sua “transferência” de género, não é menos verdade que o faz através de uma realização pouco convincente. Assistimos, assim, a uma deriva entre algumas componentes clássicas do western e vagas sugestões de thriller psicológico que, de tão ligeiras e pouco trabalhadas, em vez de suspense suscitaram risos embaraçados em alguns espectadores. Registe-se, em qualquer caso, a sofisticada execução técnica, com destaque para a direção fotográfica do francês Philippe le Sourd (que assinou, por exemplo, as imagens de O Grande Mestre, de Wong Kar-Wai).
Outro caso revelador, ainda menos conseguido, foi Rodin, o retrato de Auguste Rodin assinado por Jacques Doillon, com Vincent Lindon no papel do escultor. Trata-se de um projeto hiperacadémico que mais parece uma “biografia de artista” à maneira da televisão mais rotineira.
Daí o destaque para outro belo filme visto da Quinzena dos Realizadores: Frost, do lituano Sharunas Bartas, e mais uma aventura íntima a refletir os dramas contemporâneos da Europa (neste caso, na Ucrânia). A provar que a secção competitiva deixou “escapar” algumas pérolas que estão a enriquecer outras secções do festival.