Num bairro cada vez mais pressionado pela procura imobiliária, vitória nas marchas, a segunda consecutiva, “foi um grito de alerta” para todos os bairros históricos, dizem participantes
CARLOS RODRIGUES LIMA A noite de Dália Dias foi longa. Adormeceu já para lá das sete da manhã, depois de Alfama ter sido anunciada, pelo segundo ano consecutivo, como vencedora das Marchas de Lisboa. Porém, não será o cansaço da folia que a faz descurar os afazeres do dia seguinte: preparar as bifanas, descascar os alhos, arranjar as saladas e as sardinhas. Fazendo uso do habitual vocativo “nascida e criada em Alfama”, Dália, 75 anos, estava “muito orgulhosa” do seu bairro. Uma vitória “cinco estrelas” para uma moradora que nos últimos anos tem visto o seu bairro também ser classificado como “cinco estrelas” do ponto de vista imobiliário.
Daí que, como referiu ontem ao DN Carlos Antunes, membro da marcha de Alfama, a escolha da música deste ano não tenha sido inocente: “Não toquem na minha Alfama.” Um tema de 1950, que neste ano “foi um alerta para todos os bairros históricos”, declarou Carlos Antunes ao DN, à porta do Centro Cultural Magalhães Lima, base de operações da marcha do bairro. “As pessoas estão a ser obrigadas a sair dos bairros, é só turismo e alojamentos, o problema daqui a uns anos é se perdemos o bairrismo”, acrescento. O bairrismo, aquilo que torna um determinado local peculiar.
Quando Dália Gomes era nova e dizia que morava em Alfama, “as outras torciam o nariz, ficavam assim meio enojadas”. O problema, contou, é que “agora toda a gente quer vir para aqui”. “Os senhorios vendem os prédios, depois as pessoas mais velhas assinam novos contratos de arrendamento por um ano. Ao fim desse tempo, são obrigadas a sair.” Saem os mais velhos e com eles o tal bairrismo.
Marcha vencedora apresentou um tema musical com “recados”
Por isso, como é que ainda se consegue mobilizar gente para as marchas? “Por gosto, apenas e só por gosto, as pessoas não vêm para aqui ganhar dinheiro”, explica Carlos Antunes, motorista de profissão, em Benavente, e uma habitual presença na marcha de Alfama, que nos últimos cinco anos ganhou quatro edições.
A receita? “Entrega, rigor e disciplina”, diz Carlos Antunes, revelando que os participantes até chegam a assinar uma espécie de contrato, declarando a sua “total disponibilidade” para a marcha.
No meio disto tudo, há até uma espécie de regras de segurança para evitar a espionagem. “Os arcos só saem à rua no dia do desfile no pavilhão, assim como os fatos. Estes só saem da associação no dia do pavilhão e são levados para as casas dos marchantes em porta-fatos ou, muitas vezes, tapados com sacos do lixo”, continua Carlos Antunes, mostrando-se orgulhoso de toda a logística à volta da marcha. “Isto é o nosso bairro.” Ainda é.
Mas, se Alfama ganhou, o Bairro Alto também esteve em festa. De sexto classificado em 2016, a marcha deste bairro lisboeta saltou para o 2.º lugar, ganhando até a categoria de desfile na Avenida da Liberdade.
Neste ano, as Marchas Populares de Lisboa fizeram uma alusão ao oceano Atlântico como “mar de encontros”, no âmbito de “Passado e Presente – Lisboa, Capital Ibero-Americana de Cultura”.
Segundo a Empresa de Gestão, Equipamentos e Animação Cultural da Câmara de Lisboa, as marchas são avaliadas com uma pontuação de zero a 20 e em dois momentos, no pavilhão MEO Arena e na Avenida da Liberdade, nas categorias de coreografia, cenografia, figurino, melhor letra, musicalidade, melhor composição original e desfile da avenida. A festa continua nos próximos dias.