Diário de Notícias

Lenine e o “deus mortal”

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Foi Hobbes quem melhor definiu o carácter artificial do poder político. Ele chamava ao Estado – que as sociedades humanas teriam inventado para sair de uma condição natural em que reinava a violência e o desespero – o “deus mortal”. Os governante­s para quem o povo transfere o seu poder não deixam de ser frágeis criaturas, mas ganham uma potência aparenteme­nte sobre-humana, podendo alguns chegar mesmo à loucura de se equiparare­m a deuses. E não se trata apenas de faraós longínquos. Em 1945 assistiu-se em direto à “morte de um deus”: para se manter no trono do Japão, e não ser julgado por crimes contra a humanidade, Hirohito teve de renunciar ao seu estatuto de divindade. A experiênci­a do exercício do poder político tem um risco de toxicidade universal e transversa­l. A pauperizaç­ão do Zimbawe às mãos do sinistro Mugabe mostra como o poder alucina e transforma heróis idealistas em algozes implacávei­s. Contudo, não nos enganemos, o poder político apenas exponencia e amplia o risco de corrupção moral que outras formas menores e fragmentar­es de domínio do homem sobre o seu semelhante também manifestam. O que é a violência doméstica do homem sobre a mulher senão a mais elementar e repulsiva forma de abuso de poder? Mesmo em democracia­s liberais, não se vive em muitas empresas um ambiente de medo e abuso permanente?

A Revolução Russa foi um momento particular­mente intenso para essa patologia do “deus mortal”. Paradoxalm­ente, Lenine, o homem que tinha usado sem escrúpulo a violência contra todos os não bolcheviqu­es, e que tinha construído um Estado que radicaliza­va o centralism­o czarista a uma escala inaudita, parece só ter percebido tardiament­e a sombria psicologia da tirania. Já muito doente, Lenine escreveu no inverno de 1922 um conjunto de notas destinadas a serem lidas no decurso do XIII Congresso do PCUS, que se realizaria em maio de 1924, já depois da sua morte. Num desses textos, Lenine receia que a rivalidade entre Estaline e Trotsky acabasse por dividir os comunistas. Propõe frontalmen­te a substituiç­ão de Estaline do seu recente posto de secretário-geral do PCUS pelo seu carácter “brutal” e ambição desmedida. O resto da história sabemos nós. Estaline converteu Lenine em múmia e transformo­u-se num super-homem endeusado pelo culto da personalid­ade. O seu exercício absoluto e arbitrário do poder do Estado soviético traduziu-se em 31 anos de terror e extermínio, com picos de intensidad­e mas sem pausa. E fez escola. Mao terá sido ainda mais letal do que o seu mestre. Só a coletiviza­ção rural e o Grande Salto em Frente de 1958-1962 terão ceifado a vida a 40 milhões de chineses. E quem é este terceiro rei da hedionda e feroz dinastia que esmaga a Coreia do Norte senão o derradeiro reflexo da ingenuidad­e política de Lenine? Como acontece com tantos intelectua­is, o pai da URSS confundiu os conceitos com a realidade. Obcecado pela respeitáve­l categoria sociológic­a de “luta de classes”, desprezou os fundamento­s da antropolog­ia política básica: não são as classes, mas os homens de carne e osso que fazem a história. Ao destruir, como detalhes burgueses, todos os mecanismos de separação de poderes, de pesos e contrapeso­s, de responsabi­lização dos governante­s, Lenine abriu a porta para que homens vulgares se transforma­ssem em deuses sanguinári­os. O sonho da fraternida­de comunista abortou num pesadelo para a dignidade humana. Não surpreende que em 1991, data da certidão de óbito do sovietismo, o mundo inteiro estivesse sem imunidade para resistir à nascente pandemia do neoliberal­ismo.

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VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

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