Diário de Notícias

A maior riqueza do Brasil

- JOÃO ALMEIDA MOREIRA JORNALISTA

Ô,ô,ô/ Não quero advogado, quero regime fechado com você/Ô,ô,ô/ Roubar um coraçãoéc aso sério/ Suas entençaé viver na mesma cela que eu/Ô,ô,ô .” Um dos últimos êxitos do ritmo sertanejo universitá­rio ecoa pela rua. Mas quem está a cantar? E de onde vem o som? Ninguém sabe, ninguém vê. Finalmente, um pedestre descobre: é de lá de cima, do topo de um prédio. São três limpadores de janelas, pendurados a uns 50 metros de altura numas cordas tão fininhas a ponto de prender a respiração, que animam a galera junto ao chão.

É feriado nacional de 15 de Novembro e os rapazes, que arriscam a vida a troco de um salário mínimo ou coisa que o valha, cantam em coro com uma alegria incontrolá­vel no peito, indiferent­es aos dramas do seu Brasil, como a omnipresen­te Operação Lava-Jato que serviu de inspiração à dupla sertaneja autora da música que os inspira.

Sim, porque o Brasil passa por uma Lava-Jato que levantou o tapete da corrupção e não deixou pedra sobre pedra em nenhum partido – do esquerdist­a mais convicto ao reacionári­o mais empedernid­o, quase to- dos os políticos, em maior ou menor grau, estão envolvidos numa farra de anos (de séculos, na verdade) com o dinheiro do povo.

Por causa desses roubos e de outros, o país passou de mais promissor dos BRIC, ainda em 2013, à pior recessão económica da sua história. De desemprego quase zero a 13 milhões de desocupado­s, a viver de bicos (biscates, em Portugal) para receberem mais uns tostões ao fim do mês, como provavelme­nte aqueles limpadores de janelas a cada feriado.

Nesse 2013, tão próximo e tão distante, os brasileiro­s não cabiam em si de ansiedade pela organizaçã­o do Mundial de Futebol do ano seguinte e pelos Jogos Olímpicos do Rio de 2016 – afinal, terminadas as duas manifestaç­ões sobra uma dezena de elefantes brancos espalhados pelo país, alguns a servir de depósito de ônibus, outros a provocar despesas milionária­s por causa de infiltraçõ­es e obras mal acabadas, quase todos com as construçõe­s sob investigaç­ão em operações subsidiári­as da Lava-Jato. O Rio pós-Olímpico, em particular, entrou numa crise financeira sem precedente­s que põe em causa o funcioname­nto de escolas, hospitais, delegacias de polícia e outros serviços básicos.

É lá, no seu coração, na Rocinha, maior favela do Brasil com 70 mil habitantes, que decorre uma guerra civil em resultado de uma luta de gangues que vêm assustando a já de si sacrificad­a população local, último sintoma de uma cidade acossada até às vísceras pela violência. A violência que parece aumentar por todo o território agora que um clima de intolerânc­ia se disseminou – são exposições de arte fechadas por atentarem contra os supostos bons costumes, credos religiosos perseguido­s por outros credos religiosos, além de censuras, ofensas, patrulhas e ódios dispersos.

Depois de na primeira década do século a política ter dado sinais exteriores de maturidade, com governos globalment­e positivos e ideologica­mente moderados, ora de centro-direita (PSDB) ora de centro-esquerda (PT), o Brasil caiu nas mãos do que tem de mais retrógrado (o fétido PMDB e o bando de partidos clientelis­tas criados à sua imagem).

O presidente da República, com os seus 3% de aprovação e atingido no tutano pela Lava-Jato, cedeu na luta contra a escravidão para agradar aos coronéis do latifúndio, permitiu que se desprotege­sse uma área equivalent­e à Dinamarca na Amazónia para servir aos interesses de mineradore­s, entre outros recuos civilizató­rios. Em paralelo, o país sofreu em 2015 o maior desastre ambiental da sua história com o rompimento da barragem de Mariana.

E, no entanto, os limpadores de janela cantam, mesmo perdendo o feriado, e a galera no chão canta junto a eles. O Brasil canta. Quem conhece as duas realidades sabe que o velho cliché ainda cola: entre portuguese­s, e europeus em geral, há uma inconscien­te tendência para a nostalgia; entre brasileiro­s, por maiores que sejam as crises da economia, da política e da sociedade, a alegria, às vezes inconscien­te, é um dever, um fim, um mantra. E essa é a maior riqueza do país.

O Rio pós-Olímpico, em particular, entrou numa crise financeira sem precedente­s que põe em causa o funcioname­nto de escolas, hospitais, delegacias de polícia e outros serviços básicos

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— em São Paulo

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