Salbutamol, ou como a asma de Froome volta a tirar o ar ao ciclismo
Vencedor do Tour e da Vuelta, e grande figura atual da modalidade, britânico Chris Froome está em xeque após análise positiva
RUI FRIAS Depois de ter visto cair do pedestal, num passado recente, inúmeros campeões apanhados nas malhas do doping, de Lance Armstrong a Alberto Contador (ver quadro ao lado), o mundo do ciclismo voltou ontem a ser abalado por um potencial caso de doping que vem lançar suspeitas sobre a grande figura atual da modalidade: o britânico Chris Froome.
Em causa, doses excessivas de salbutamol, numa análise efetuada após a 18.ª etapa da Volta a Espanha deste ano, no dia 7 de setembro. Ora, esse é o princípio ativo do broncodilatador Ventolin, usado para combater a asma, uma doença de que Froome padece “desde criança”, lembrou ontem o ciclista, em reação à notícia. O salbutamol é uma dessas substâncias cuja utilização é permitida pela Agência Mundial Antidopagem (AMA) apenas em determinadas circunstâncias e em certas doses. E o problema é que Chris Froome duplicou o limite máximo de mil nanogramas por mililitro de urina – a análise ao britânico (entretanto confirmada também em contra-análise) revelou uma concentração de 2000 ng/ml.
Froome, que tem autorização para um uso terapêutico da substância – conhecido em língua inglesa pelo acrónimo TUE (therapeutic use exemption) –, explicou que aumentou as doses de tratamento por “conselho do médico” da Sky e por ter “piorado” a asma naquela altura. Mas disse ter tido “as maiores precauções para garantir que não excedia as doses permitidas”. “Eu utilizo um inalador para atenuar os sintomas (sempre dentro dos limites permitidos) e sei que sou, obviamente, controlado em cada dia que uso a camisola de líder”, acrescentou. Teste à credibilidade A incidência de asma, e consequentemente do uso de substâncias terapêuticas como os broncodilatadores, é mais elevada em atletas de alta competição, por norma devido às grandes quantidades de oxigénio consumidas em condições atmosféricas e climatéricas muitas vezes adversas. Um estudo da Universidade de Kent, em 2014, concluía que um terço dos ciclistas da equipa Sky sofria de asma, assim como 70% da equipa olímpica britânica de natação, quando a média nacional rondava 9%.
A grande luta de Froome, quatro vezes vencedor da Volta à França e que neste ano conseguiu o feito raro de ganhar Tour e Vuelta num mesmo ano (juntando-se às lendas Anquetil e Hinault), passa agora por sustentar a credibilidade das suas alegações num universo, o do ciclismo, cuja imagem neste domínio está historicamente afetada.
Depois do escândalo de Lance Armstrong, os feitos recentes Froome davam corpo à esperança do ciclismo em voltar a ter um super-herói inabalável. E o britânico, nascido no Quénia há 32 anos, vinha saindo imune do cerco sobre a equipa Sky, alvo de um inquérito parlamentar em Inglaterra devido à notícia da entrega de um pacote suspeito de medicamentos a Bradley Wiggins, em 2011 – inquérito encerrado, sem provas, há um mês.
Poucas horas após a divulgação do caso, o segundo classificado da última Vuelta, o italiano Vincenzo Nibali, já veio a público duvidar da necessidade de Froome em dupli-
Froome venceu quatro Tours, uma Vuelta e dois bronzes olímpicos car a dose de Ventolin num dia em que “até estava a chover”. “Tenho o mesmo problema e em dias de chuva não me atrapalha”, disse.
Luís Horta, antigo responsável da Agência Antidopagem Portuguesa, também tem reservas sobre a versão do britânico, tendo afirmado à agência Lusa que não há “nenhuma razão terapêutica”, nem “em caso de agudização da asma”, para “haver uma dose superior à que a AMA define”. Quando usado em doses elevadas, o salbutamol tem efeitos anabolizantes, permitindo o aumento da massa muscular e a diminuição da gordura corporal.
milhões de euros É o salário anual de Chris Froome na equipa Sky, de acordo com informação da BBC. O ciclista arrisca suspensão que pode ir até quatro anos.
A única forma de Froome provar a sua inocência passa, agora, por um teste farmacocinético controlado. Luís Horta explica: “Nestes casos, para dar o benefício da dúvida ao atleta, a AMA permite a realização de um estudo farmacocinético controlado. Em ambiente controlado é dada ao atleta a dose terapêutica que ele diz ter tomado para ver se os níveis produzidos são superiores a mil nanogramas. Se forem, ele é um caso muito especial, completamente fora do que é normal e pode ser ilibado.” “Eu não me recordo de nenhum caso em que se tenha provado isso”, acrescentou.
Para já, o ciclista da Sky não está suspenso, mas arrisca uma pena que pode ir de uma simples advertência a dois anos, se “demonstrar que não teve negligência ou culpa significativas”, ou mesmo até uma suspensão por quatro anos, “se a UCI conseguir provar que houve uma intencionalidade do atleta”.
Se for castigado, Froome deverá perder também a vitória na Vuelta, mas quem voltará a ser o grande derrotado será mesmo o ciclismo.