A nova vida de Inês de Medeiros e outros estreantes a aprender a ser autarcas
Sentaram-se na cadeira de presidentes de câmara, pela primeira vez, há pouco mais de dois meses. A vida destes autarcas, desde então, tem sido uma “avalanche”
É uma sala ampla, com uma longa mesa de reuniões e uma secretária onde se veem alguns dossiês e papéis, tudo muito arrumado. De um lado, a bandeira do município. Do outro, um pequeno móvel que ostenta os únicos objetos pessoais à vista: duas fotografias dos filhos.
Inês de Medeiros chegou a esta sala há dois meses. Há um ano, quando foi convidada para avançar como candidata do PS a Almada, nem mesmo a própria antecipava que acabaria a sentar-se na cadeira de presidente da autarquia. O primeiro dia nos Paços do Concelho, diz entre risos, “foi muito cómico”: “Não havia nada. Cheguei a este gabinete enorme e estava tudo vazio, limpinho, não havia nada. Não havia pastas preparadas, dossiês, não estava ninguém para nos receber, ninguém! O anterior presidente tinha-me dado a chave, chegámos aqui… e entrámos.”
Estava-se então no final de outubro e a partir daí “foi deitar mãos à obra” – “conhecer as equipas, conhecer as pessoas, ainda nem consegui fazer a ronda por todos os serviços”. As primeiras semanas foram uma “avalanche”: “Fomos confrontados com uma série de urgências, que são as urgências normais para uma atividade executiva.” Resumido em poucas palavras: “pilhas de papéis”.
A 1 de outubro passado já a noite das autárquicas ia adiantada quando o país político abriu a boca de espanto: Almada, bastião co- munista nos últimos 40 anos, passara para as mãos do PS – e os socialistas não terão sido dos menos surpreendidos.
Atriz, realizadora, Inês de Medeiros chegou à política em 2009, como deputada à Assembleia da República (antes, tinha sido mandatária de Sampaio). Admite que quando foi convidada para avançar como candidata à Câmara de Almada – faz um ano precisamente agora em janeiro –, vencer as eleições não era um cenário em cima da mesa. Tirar a maioria absoluta à CDU, sim, mas disputar a vitória era qualquer coisa fora do horizonte. Diz que as coisas mudaram durante a campanha: “Tive muito tempo para preparar a candidatura, para andar pelo concelho, e quando a campanha foi avançando tornou-se evidente que qualquer coisa ia acontecer, não sabíamos muito bem o quê.”
E agora? Como é sentar-se na cadeira de presidente de câmara do nono maior concelho do país? “Obviamente, isto é muito intenso, é muito diferente de tudo o que fiz até agora, mas todas as nossas experiências nos valem. E há uma coisa que é básica em todas as funções, que é a organização.” A agora autarca diz que trouxe da Fundação Inatel, de que era vice-presidente, a “experiência de gerir uma instituição muito complexa” – um manual de formação prática em gestão pública. “Deu-me muito traquejo”, acentua a ex-deputada, que tinha como único currículo autárquico a presidência da assembleia de freguesia de Campo de Ourique, entre 2013 e 2017.
Inês de Medeiros diz que a surpreendeu “uma certa informalidade na forma de agir da Câmara”. “Acho que é inerente ao facto de este município nunca ter mudado de força política.” E, não tratassem as autarquias de um imenso universo de áreas, vê-se agora a tratar “uma série de assuntos surpreendentes”. “Nunca me imaginei a discutir a pressão da água, a força nos canos, os transformadores, isso não haja dúvida que é muito surpreendente. Mas ao mesmo tempo é muito desafiante”, diz a presidente da autarquia, por inerência do cargo responsável pelos serviços municipalizados de água.
Inês de Medeiros mora em Lisboa e todos os dias atravessa o rio para Almada – “ao fim de semana de cacilheiro”. Anda a ver casas no concelho, mais para refúgio das noitadas de trabalho que para habitação permanente: com a filha na escola na margem oposta do rio, a mudança de morada não está no horizonte. Da escola para a câmara Carlos Ascensão chama-lhe uma mudança “quase radical”. Passou os últimos 30 anos a ensinar filosofia e psicologia a jovens do ensino secundário. Há dois meses mudou-se de armas e bagagens para a câmara municipal. Tempo bastante para uma conclusão: “A vida mudou muito”.
O agora presidente da Câmara de Celorico da Beira ganhou as eleições nas listas do PSD, vencendo o PS, que ocupava a câmara. “Sempre
tive algum gosto pela vida política. Hoje tem-se uma ideia muito negativa da vida política – com alguma razão, convenhamos – mas na sua génese é a arte mais nobre, a arte de servir os outros”. Carlos Ascensão diz que a hipótese de um movimento independente chegou a ser discutida à mesa, com amigos, mas “depois surgiu o desafio do PSD” – “e aceitei com gosto”. Currículo político? “Uma brevíssima incursão na função de chefe de gabinete.”
Nas novas funções, diz o autarca, o tempo parece correr mais depressa. “No ensino também havia uma envolvência grande, muitas vezes os horários extravasavam para trabalho de casa. Mas aqui há uma disponibilidade completa de horários, os dias de trabalho passaram a ser muito compridos, as 24 horas do dia são curtas.” Há “muita burocracia, muita papelada para assinar”. Surpresas do cargo houve, mas não foram boas: “Estamos numa época de paz e amor, não quero acusar ninguém, mas não nos deparámos com um cenário idílico, a nossa situação financeira não é propriamente cor-de-rosa.”
Ao contrário do que acontece num grande município como Almada, Carlos Ascensão é presidente “num meio muito pequeno, num meio rural em que a proximidade é um valor a acentuar. Conhecemos as pessoas, sabemos o nome, sabemos um pouco da vida delas”. Também por isso confessa “alguma frustração quando nos sentimos impotentes para dar resposta”. Diz que falta ao interior “protestar, reivindicar, bater o pé”, levantar a voz até que seja ouvida pelo poder central: “Esta jangada de pedra está muito virada para o mar.” “O interior tem muita coisa boa, produtos de excelência, um imenso património natural e histórico. E tem pessoas. Pode ter menos, mas onde houver uma pessoa deve haver o respeito que ela merece.” E a escola? “Claro que tenho saudades, esse chamamento existe sempre. Mas às vezes vou lá fazer uma visita.” “Estamos a desenvencilhar-nos” Henrique Bertino está longe de ser um novato na vida política. Foi presidente de junta de freguesia durante 16 anos. Sempre eleito nas listas da CDU. Pela ordem natural das coisas voltaria a ser assim, mas a história acabou por tomar um rumo muito diferente. O próprio explica-o assim, referindo-se ao anterior mandato autárquico: “Trabalharam mal. Fizeram um mau trabalho nos últimos cinco, seis anos. Eu estava revoltado.”
Aos 61 anos, Henrique Bertino é hoje o presidente da Câmara de Peniche. Cortou com o PCP – numa carta aos eleitores chamou-lhe a “decisão mais inquietante” que tomou na vida – e à frente do Grupo de Cidadãos Eleitores por Peniche acabou por vencer as autárquicas. De todo o processo guarda algumas “mágoas”, mas agora é tempo de olhar para a frente.
O autarca admite ter uma “equipa que não tem experiencia autárquica nem política”, mas diz que “está a aprender sem aqueles viciozinhos da politiquice”. “Estamos a desenvencilhar-nos”, acrescenta, antes de dizer que “tem sido aliciante, é um grande desafio”.
Há cerca de dois meses no cargo não tem dúvidas em afirmar que a “maior dificuldade é o tempo”, ou melhor, a falta dele. Muito desse tempo é passado com as questões burocráticas inerentes ao cargo. “Faz-me falta a rua”, lamenta Henrique Bertino, que diz gostar de acompanhar tudo o que se passa no terreno. E de falar com os munícipes: “Quando ando na rua estou sempre a parar. Tenho muita proximidade com as pessoas da minha terra e tenho muito orgulho nisso.”
Mas “Janeiro já vai ser diferente”, garante o presidente da Câmara de Peniche, sublinhando que até agora foi o tempo de fazer a gestão de transição. Surpresas? “Talvez não contasse com uma pressão tão grande, no imediato, do PSD”, refere Henrique Bertino, antes de acrescentar que “os partidos não têm simpatia pelos independentes”. “Na oposição não sabemos nada” Mais a norte, em São João da Pesqueira (distrito deViseu), o advogado Manuel Cordeiro, de 39 anos, também saiu vencedor das autárquicas à frente do movimento independente “Pela Nossa Terra” – com a particularidade de nem o PS nem o CDS se terem apresentado às eleições. No anterior mandato (em que se candidatou e perdeu para o PSD) foi vereador, e diz que uma das surpresas que teve como presidente eleito foi constatar a pouca informação que chegava aos vereadores. “O facto de estarmos na oposição... Não sabemos nada, o essencial não passa por ali. [Como presidente] Foi tudo muito diferente do que estava à espera. Fiquei muito surpreendido com a falta de organização interna. Deparámo-nos com muitas dívidas para pagar que não estão documentadas em absolutamente lado nenhum. Na segunda semana depois de tomar posse apareceu-me um empreiteiro a dizer que a câmara lhe devia meio milhão de euros... E continuo a ter surpresas todos os dias.”
Até há pouco advogado em Coimbra, o autarca passa agora o dia na Câmara Municipal. Sai para para ir buscar as filhas pequenas à escola e para jantar e muitas vezes ainda regressa “até à meia-noite”. “Para quem queira levar as coisas de uma forma séria é muito trabalhoso, há uma grande carga burocrática. Mas não me estou a queixar. É essa a minha função”, diz Manuel Cordeiro, acrescentando um lamento que é comum aos quatro recém-autarcas ouvidos pelo DN – a falta de tempo para a preparação do primeiro orçamento do mandato, que todos reputam de “o possível”.
“Nunca me imaginei a discutir a pressão da água, a força nos canos. Isso é muito surpreendente”
INÊS DE MEDEIROS
PRESIDENTE DA CÂMARA DE ALMADA “É uma equipa sem experiência política, mas está a aprender sem os viciozinhos da politiquice”
HENRIQUE BERTINO
PRESIDENTE DA CÂMARA DE PENICHE “Os dias de trabalho passaram a ser muito compridos, as 24 horas do dia são curtas”
CARLOS ASCENSÃO
PRESIDENTE DA CÂMARA DE CELORICO DA BEIRA