Seguir em frente
Tardou, mas regressou – uma dúzia de anos depois de ter ganho o National Bool Award (norte-americano) para não ficção, está de volta à edição nacional este opus de Joan Didion, uma das mais espantosas vozes do new journalism e, mais do que isso, da literatura – em sentido lato – dos Estados Unidos. A carga que suporta e transmite neste livro é desmedida, como incontáveis são as consequências de uma morte que, de próxima, nos amputa a alma, deixando uma sensação só comparável à de quem se vê privado de um parte do corpo e continua a senti-la. Convirá explicar que a escrita de O Ano do Pensamento Mágico decorre, acompanha, pormenoriza até à exaustão todo o caminho que a autora percorre a partir do momento em que o marido é vítima de um ataque cardíaco fulminante e morre diante dos seus olhos, depois de regressarem ambos da visita a uma filha, internada nos cuidados intensivos de um hospital nova-iorquino.
Didion, antiga jornalista da Vogue, colunista e articulista da Life, da Esquire e do The NewYork Times, entre outros, estreou-se na ficção há mais de 50 anos. Aqui, não (nos) poupa nas palavras: “A dor da perda acaba por ser um lugar que nenhum de nós conhece, até o alcançarmos. Antecipamos (sabemos) que alguém que nos é próximo pode morrer, mas não olhamos além dos poucos dias ou semanas que se seguem imediatamente à morte. Interpretamos erradamente a natureza desses poucos dias ou semanas. Podemos esperar, caso a morte seja súbita, um sentimento de choque. Mas não esperamos que esse choque seja eliminador, que desloque o corpo e a mente. Podemos esperar a prostração, ficar inconsoláveis, enlouquecidos pela perda. Não esperamos ficar literalmente loucos ou ser a ‘mulher calma’ que acredita que o marido está prestes a regressar dos mortos e que precisa dos seus sapatos. Na versão da dor que imaginamos, o modelo a seguir é a ‘recuperação’. Um certo movimento para diante irá prevalecer. Os dias mais difíceis serão os primeiros. Imaginamos que o momento em que seremos testados mais severamente será o funeral, e depois disso terá lugar essa recuperação. Quando antecipamos o funeral, pensamos se conseguiremos ‘passar por isso’, estar à altura da situação, exibir a ‘força’ que, invariavelmente, é mencionada como a reação correta perante a morte.”
Toda esta “estratégia” acaba por ruir. E é de falências sucessivas que Joan Didion nos dá conta, explicando os momentos de abatimento, as ocasiões em que sente precisar de uma reconstituição dos acontecimentos (e isso inclui desde uma cronologia ao minuto à enumeração de todos os medicamentos e procedimentos), os
flashes de negação, o escuro vazio que resulta do silêncio e da ausência, o destino que nos leva a percorrer de novo e a sós os caminhos e os locais antes cruzados em conjunto. Este é um livro sobre o desgosto elevado ao infinito – porque se vai percebendo que, com mais remendo ou mais “névoa” do tempo, ele nunca terá verdadeiramente um fim. E, no entanto, é preciso continuar a viver…
Se o quadro de conteúdos não foge daqui – a escrita do livro termina um ano e um dia depois da morte abrupta do seu marido –, há ainda um fator adicional que torna este relato um valor acrescentado que nunca se esgota: o casamento perfeito entre um diário íntimo e uma reportagem que ainda marca mais pontos por ter sido encarada na primeira pessoa, viajando entre o desabafo, a análise e a descrição de moldura tão objetiva quanto possível. Não é, como já se percebeu, uma obra fácil. Não pretende ser uma lição, porque nesta tristeza de nada valem os exercícios académicos. Mas, apesar de obrigar, em múltiplas passagens, a engolir em seco, é um daqueles casos em que a escrita fica tatuada, de forma clara, na pele da memória. Não haverá muitos assim.