Diário de Notícias

O futebol e o Estado que volta a falhar-nos

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Que o futebol é do domínio do emocional e não do racional, dou de barato. É claro que eu quero sempre que o meu clube ganhe. É óbvio que eu vejo sempre as jogadas com uns óculos próprios e que os golos do meu clube são sempre bonitos, nem que sejam marcados às três tabelas. Quem não gosta de perder quer ganhar sempre. E eu não gosto de perder, nem que seja a feijões. Mas até no futebol – ou sobretudo no futebol – há uma fronteira entre o emocional e o racional que, por vezes, temos de atravessar. Em nome da nossa sanidade mental, em nome de uma sociedade mais digna e, sobretudo, a bem do próprio futebol. Em Portugal, há cada vez menos gente a querer atravessar essa fronteira, a começar pelos dirigentes dos clubes e a acabar nos adeptos.

O futebol não é – e, neste caso, ainda bem – apenas um jogo. É uma parte da economia do país que movimenta milhões, que emprega milhares e que rende (talvez pudesse render mais) milhões ao Estado em impostos. O aperfeiçoa­mento da profission­alização do futebol levou a que este jogo se tornasse muito mais do que uma mera rivalidade entre clubes e entre adeptos. O futebol cumpre, em muitos casos, um papel relevante na sociedade, de promoção do desporto – as academias são um ótimo exemplo – e de educação das novas gerações.

Mas, simultanea­mente, o futebol tornou-se uma das maiores vergonhas da nossa sociedade e um dos piores exemplos para essas mesmas novas gerações. E há culpas a repartir por vários atores.

A começar pelas claques de futebol, que formam uma espécie de exército dos clubes para insultar, ameaçar e atacar todos quantos ousarem ser de um outro clube, tantas vezes impunement­e. Com a conivência dos dirigentes dos clubes, que preenchem o espaço mediático para dizerem as maiores alarvidade­s, sempre à procura de mais um inimigo que os ajude a desviar as atenções da sua própria incompetên­cia. Sem esquecer a incapacida­de da Liga de Clubes e da Federação Portuguesa de Futebol que, vivendo na dependênci­a destes clubes, deixam o futebol viver nesta anarquia.

Sim, a comunicaçã­o social também tem o seu quinhão de culpa. Porque alimenta este nojo nacional com “comentador­es” escolhidos, criteriosa­mente, pela sua capacidade de instigar este clima de ódio, em nome da ditadura das audiências. Sem esquecer os canais dos clubes, que concorrem diretament­e com os verdadeiro­s órgãos de comunicaçã­o social, apesar de, tantas vezes, se dispensare­m do cumpriment­o de qualquer regra ética ou deontológi­ca do jornalismo. Ainda bem que existe a Entidade Reguladora para a Comunicaçã­o Social e a Comissão da Carteira de Jornalista para nos ajudar a separar o trigo do joio. Imaginem o que seria da nossa democracia se não existissem.

Se este ambiente explosivo e tóxico em que vive o futebol português devia ser já motivo mais que suficiente para levar o Estado a intervir, o que dizer das suspeitas de crime que correm todos os dias. Corrupção, compra de resultados, crimes informátic­os, difamação, é escolher, que o leque de suspeitas é grande. Acusados e punidos é que não há. Inocentado­s também não. Sobram, no entanto, os nomes atirados para a lama, entre dirigentes, jogadores, árbitros e até jornalista­s, vale tudo menos arrancar olhos. É verdade que a justiça é cega, mas talvez fosse bom que a venda que tem nos olhos servisse apenas para investigar e julgar e não para ignorar a forma como se está a degradar o nosso Estado de direito.

Tudo isto ajuda a alimentar um monstro: a paixão dos adeptos que, umas vezes movidos pela emoção e outras pela irracional­idade, consomem tudo sem nada ruminar, para depois regurgitar­em nos cafés, à porta dos estádios e nas redes sociais. É abrir uma qualquer caixa de comentário­s e deixar-se enojar.

No fim de tudo isto, não sei o que vai sobrar do futebol se continuarm­os a permitir esta desordem pública, nas várias dimensões que ela assume. Admiro muito os que ainda conseguem olhar para um jogo de futebol e ver um jogo. Continuo a admirar os jogadores de clubes adversário­s a abraçarem-se no final de um encontro, os treinadore­s que ainda conseguem discutir futebol nas conferênci­as de imprensa ou os adeptos que vão em família aos estádios, cada um vestido com as cores do seu clube, como deve ser.

É por isso que aqui, como em tantas outras coisas, o Estado não pode falhar-nos. E tem de ter coragem para tomar decisões difíceis, se for o caso. Coragem para suspender o campeonato nacional de futebol e obrigar todos a uma reflexão profunda. Ou é preciso acontecer mais uma tragédia?

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ANSELMO CRESPO

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