Canábis, moralismo e insensibilidade
Em Portugal produz-se canábis medicinal, mas para exportação; ainda é proibido a doentes de cancro recorrer à substância para obter alívio
Em 2012, o estado americano do Colorado legalizou o uso recreativo da canábis, tendo a medida entrado em prática em 2014. Foi a estreia mundial da legalização da produção, distribuição, venda e compra desta substância para consumo não medicinal e em mercado livre – querendo dizer que, ao contrário do que se passou no Uruguai (também em 2012) não é o Estado a dominar o negócio; embora fortemente regulado, este foi entregue a privados.
Ao contrário do que os setores contrários à legalização preconizavam, os resultados estão muito longe de catastróficos: não se verificou um aumento da criminalidade (pelo contrário); os impostos provenientes da atividade ultrapassaram as melhores estimativas; e, soube-se em dezembro, um inquérito nacional demonstrou que o consumo de canábis entre jovens dos 12 aos 17 baixou de modo significativo naquele estado.
No estudo anterior, que abrangia o período 2014-2015, o Colorado estava no topo do ranking dos EUA no consumo de canábis nesta faixa etária, o que foi apontado pelos adversários da legalização como evidência de que os seus agoiros se concretizavam. Mas no biénio 2015-2016 a percentagem de adolescentes que reportou consumo da substância no mês anterior ao da consulta baixou de 12% para 9%, fazendo o estado baixar para sétimo lugar no que a este indicador respeita, atrás de Alasca, Maine, Novo México, Oregon, Rhode Island e Vermont. Destes, só Oregon e Alasca têm, desde 2014, legislações semelhantes à do Colorado (no Maine o uso recreativo foi legalizado em 2017 mas ainda não há legislação para a produção e venda).
Uma das hipóteses explicativas para a citada descida no uso autorreportado de canábis por menores no Colorado é a existência de penalidades severas para a venda a alguém com menos de 21. E, havendo estados onde o consumo, produção e venda se mantêm criminalizados com percentagens de consumo mais elevadas entre adolescentes que naqueles onde ocorreu legalização, é de facto tentador concluir que a interdição da venda a menores no contexto desta última pode estar a ser mais respeitada – e eficaz – que num contexto proibicionista. Esta conclusão parece ganhar força quando se sabe que a descida do consumo entre menores no Colorado, que acompanha a tendência geral do país no biénio 2015-2016, ocorre ao mesmo tempo que o uso entre 18 e 25 anos aumenta – no estado como no resto dos EUA. Os dados apontam até para uma parcial substituição do consumo de uma droga legal – o álcool – por outra droga agora também legal, a marijuana: em três anos, no Colorado, ou seja, desde que a venda e compra de canábis é permitida, o consumo regular de álcool baixou quatro pontos percentuais em pessoas dos 18 aos 25.
Estes factos foram tornados públicos pouco antes do anúncio do governo de Trump de que vai levantar a moratória decretada por Obama para a perseguição federal da produção, venda e compra de canábis nos estados em que estas foram legalizadas. Uma vez que a lei federal continuava a manter a proibição, esta foi a forma encontrada pela anterior administração para permitir liberdade aos estados; agora, o procurador-geral declarou que o país vai regressar, nesta matéria, à “legalidade” (rule of
law). Esta medida, cujo efeito real se desconhece, surge quando 30 estados americanos já legalizaram a canábis medicinal (ou seja, a produção, distribuição, venda e compra da substância para fins medicinais) e oito, o último dos quais a Califórnia, mais o distrito de Washington DC, permitiram, na sua maioria após referendos, o uso recreativo da mesma.
Enquanto estes oito estados representam um quarto da população do país, as sondagens indicam que desde 2013 a maioria dos americanos defendem a legalização da canábis – e em Outubro passado, numa consulta da Gallup, esse número alcançou um novo recorde, 64%. Mesmo entre os republicanos a percentagem era já 51%. Estes factos, aliados aos resultados das experiências de legalização, demonstram o quanto a política proibicionista se resume a um encarniçamento numa posição moralista, sem racionalidade de qualquer espécie. Aliás, é assim desde sempre: nunca houve qualquer evidência científica que justificasse a proibição desta substância e muito menos a sua classificação, nas convenções da ONU que impuseram, a partir dos anos 1960, a ilegalização da produção, venda e compra das substâncias denominadas como “drogas”, na mesma tabela que a heroína.
Portugal, como os EUA signatário dessas convenções, descriminalizou em 2001 o consumo de todas as substâncias nelas elencadas, mantendo no entanto a sua proibição (passou a contraordenação) e a criminalização da produção e comercialização. Nesta quinta-feira, às 15 horas, depois de ter várias vezes recusado a legalização da canábis, o Parlamento vai debater, por iniciativa do BE, a permissão do seu uso medicinal – que vários países ocidentais já legalizaram. Para quem defende a legalização da substância nos moldes do Colorado, é pouco; para os pacientes de Parkinson, cancro e outras doenças a quem a canábis fumada permite, como até a OMS já admitiu, diminuir a dor, os enjoos e o mal-estar causados por tratamentos, é crucial. Mas não se sabe ainda se haverá votação e, se ocorrer, se a proposta passa. Esperemos que triunfe o bom senso – ou a sensibilidade, pelo menos.