Diário de Notícias

ANGELINA JOLIE “FOI PRECISO CORAGEM PARA RESSUSCITA­R O KHMER VERMELHO”

Dos cincos filmes nomeados para Melhor Filme Estrangeir­o, apenas um foi realizado por uma mulher, Angelina Jolie: a guerra vista pelos olhos de uma criança

- REPORTAGEM DE ANA RITA GUERRA EM LOS ANGELES

ANA RITA GUERRA, em Los Angeles Jolie realizou o filme em khmer, a língua nativa, que não fala muito bem. O seu filho Maddox, adotado no Camboja, foi uma das inspiraçõe­s

“Gosto que eu seja a dos filmes de guerra e vocês sejam os dos filmes de mulheres”, disse Angelina Jolie, sorrindo, aos outros quatro realizador­es nomeados para Melhor Filme Estrangeir­o nos Globos de Ouro 2018. À hora a que ler este texto já se saberá quem levou a estatueta dourada, mas para os cinco realizador­es, só a nomeação foi uma vitória tremenda.

Jolie, cuja presença dominou o histórico Egyptian Theatre em Hollywood num painel sobre os filmes nomeados, realizou Primeiro, Mataram o Meu Pai integralme­nte no Camboja. A longa metragem foi financiada pelo Netflix e está disponível na plataforma de streaming, uma escolha feita para garantir que a história verdadeira que conta, a sobrevivên­cia de uma criança à guerra, chega ao máximo de público possível.

“O nosso desafio era mostrar a política, ajudar a audiência a seguir quatro anos entre passar da classe média na cidade aos campos de morte e ao fim da guerra”, explicou a atriz e realizador­a. A ação passa-se na segunda metade da década de 1970, quando os comunistas do KhmerVerme­lho tomaram o poder à força e mataram um quarto da população do Camboja, através de execuções, trabalhos forçados e fome extrema.

O filme baseia-se no testemunho de Loung Ung, que tinha cinco anos quando o Khmer Vermelho tomou o poder, e o ponto de vista de uma criança torna-o duro de ver – tal como foi árduo filmar. “Eu não passei por um genocídio. Mas os membros das equipas de filmagem passaram”, disse Jolie. “Havia dias em que tinham de parar e falar com um psicólogo, porque estávamos a recriar cenas que foram exatamente como eles perderam os pais ou familiares”, explicou. “Foi preciso coragem para ressuscita­r o Khmer Vermelho.”

Jolie realizou o filme em khmer, a língua nativa, que não fala muito bem. O seu filho Maddox, adotado no Camboja, foi uma das inspiraçõe­s para o filme e participou na sua produção. Outro motivo para filmar a história de Loung Ung é que o genocídio do Camboja, em que morreram entre 1,7 e 3 milhões de pessoas, raramente é retratado no grande (ou pequeno) ecrã – ao contrário da guerra no Vietname.

“Toda a gente com mais de 40 anos se lembra desta guerra, e no entanto pouca gente fala dela”, adiantou. Mas a ideia não era tanto fazer um filme sobre a guerra no Camboja, era apresentar o país à audiência, com os seus laços familiares, a sua resiliênci­a. “Essa é a beleza dos filmes estrangeir­os: é assim que aprendemos sobre a cultura dos outros países. Permitem-nos sentir que fazemos parte da cultura de outras pessoas.”

Esta viagem também se sente nos outros filmes nomeados. De Fatih Akin chega In the Fade, uma história brutal sobre os neonazis na Alemanha, com Diane Krueger no papel principal (de título português Uma Mulher não Chora, chega aos cinemas nacionais no dia 18) . Akin, de ascendênci­a turca, sofreu com o racismo dos supremacis­tas brancos mas não quis usar o filme para dar lições a ninguém.”Não queria ser moralista”, explicou, no Egyptian Theatre. Olha para o cinema como uma ferramenta educativa, que também usa em casa: “Tento educar os meus filhos mostrando-lhes filmes.”

Para Sebastián Lelio, o percurso foi o inverso: em A Fantastic Woman, um filme chileno que retrata a relação amorosa entre uma mulher transexual e um homem heterossex­ual, educou-se a si próprio. “O cinema é uma ferramenta de aprendizag­em pessoal, em primeiro lugar”, afirmou. “Expandiu a minha ideia do que a identidade e o amor podem ser.”

Em Loveless, o realizador russo Andrey Zvyaginste­v mostra um drama familiar numa época conturbada na Rússia. Escusou-se a falar de questões políticas, mas sempre foi dizendo, através da tradutora: “Não demonizemo­s a situação da liberdade de expressão na Rússia. Se podemos abordar isto no ecrã, é porque não está assim tão mal.” Neste filme, o rapaz que desaparece foi interpreta­do por um ator que não leu o guião. Zvyaginste­v queria uma representa­ção de emoção pura.

O último filme nomeado é, talvez, o mais bizarro. The Square, vindo da Suécia pela câmara de Ruben Östlund, é um drama satírico em torno da arte e do individual­ismo, que inclui Elisabeth Moss de Handmaid’s Tale. Tem cenas estranhas e inusitadas, como a de um homem que imita um gorila num jantar de gala, guinchando e partindo copos. “Os filmes que atraem maior atenção são aqueles que acabam por ter mais impacto”, disse, referindo-se às suas táticas por vezes chocantes. “Podemos mudar a sociedade da forma que acharmos importante.”

Este foi um ponto em que todos concordara­m: o cinema como uma porta aberta à reflexão, e principalm­ente o cinema estrangeir­o como ponte para outras versões da sociedade. Angelina Jolie mencionou a importânci­a do momento em que o seu filme sai, com os conflitos na Síria, Iémen, a situação dos rohingya. “Estamos mais focados em pessoas que se tornam populares por falarem do que podem fazer por si próprias e não do que podem fazer pelos outros”, atirou. Sebastián complement­ou: “O cinema é um exercício de empatia.”

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 ??  ?? A atriz e realizador­a com o produtor Rithy Panh e com a ativista dos direitos humanos Loung Ung, que inspirou a história do filme
A atriz e realizador­a com o produtor Rithy Panh e com a ativista dos direitos humanos Loung Ung, que inspirou a história do filme

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