Nuno Garoupa, Pedro Tadeu e Ferreira Fernandes
Agora que o escândalo Raríssimas deixou de ser notícia e tudo segue o seu curso normal longe da atenção mediática, creio que podemos refletir um pouco sobre as duas grandes conclusões daquilo que foi o tema apaixonante durante uns dias nas redes sociais e na opinião publicada. 1. Em Portugal, não há conflitos de interesses. Simplesmente não existem. Tivemos a sorte de ser abençoados com uma elite que, ao contrário de outras realidades, nunca se encontra numa posição de escolha entre dois deveres fundamentalmente contraditórios. Este fenómeno já tinha sido comentado por Luís Aguiar-Conraria, num artigo publicado no Observador a 2 de agosto de 2017. E, no caso Raríssimas, voltámos a confirmar a ausência de conflitos de interesses na sociedade portuguesa.
A inexistência de conflitos de interesses em Portugal resulta da confluência de três explicações que se reforçam. Primeiro, ao arrepio das boas práticas internacionais e de outras culturas, só há conflito de interesses se a lei diz que há. Portanto, se a lei não proíbe, então não há conflito de interesses. A moral pública coincide perfeitamente com a lei – tudo o que a lei não proíbe já sabemos que é ético e moral. A fim de evitar as estéreis discussões sobre moralidade e deontologia, que incomodam outras sociedades, em Portugal, felizmente, combinou-se que, desde que não haja um ilícito, tudo é louvável. Segundo, pessoas honestíssimas nunca enfrentam conflitos de interesses. Logo insinuar que há uma situação de conflito de interesses implica naturalmente suspeitar da honestidade do sujeito. Ora, basta ser um membro da elite portuguesa para tal insinuação ser gravíssima. Por exemplo, se Jorge Coelho e Silva Peneda, para dar dois exemplos de figuras públicas de partidos distintos, atestam publicamente que Vieira da Silva é uma pessoa honestíssima, imediatamente devem cessar quaisquer dúvidas sobre conflitos de interesses. Generalizando, em Portugal, só poderia haver um qualquer indício de conflito de interesses quando a pessoa em causa não estivesse certificada como honestíssima pelas figuras públicas. Terceiro, impondo-se um princípio de presunção de inocência, só podemos identificar conflito de interesses quando ficar amplamente demonstrado que o sujeito do dever público cedeu indevidamente perante um interesse privado. Ou seja, apenas po- demos saber que o conflito de interesses existiu depois de provada (e transitada em julgado) a corrupção. Como se ambas fossem a mesma coisa.
Na verdade, as elites portuguesas convivem com os conflitos de interesses há séculos. A tradição dos múltiplos chapéus, da acumulação de sinecuras, da plasticidade de nomeações, das amplas portas giratórias entre o Estado e o mundo económico é, em si mesma, o cimento de uma cultura que tolera e estimula os conflitos de interesses. Isso distingue as elites inclusivas e produtivas de outras sociedades daquilo que sempre foram as nossas elites predadoras e rentistas. 2. Em Portugal, os órgãos sociais não executivos de uma qualquer organização são meros ornamentos de Natal (por mera coincidência da época do ano). Quanto mais bonitos (com nomes de figuras públicas conhecidas), melhor. Mas não servem para absolutamente nada. E estão longe de ter a mais mínima responsabilidade seja no que for.
Por um lado, sabemos que um capitalismo com concentração de capital (como é a tradição portuguesa) não requer estruturas de governança com fiscalização ou supervisão (porque não há disseminação de autoridade que justifique os custos de uma governança complexa). Por isso, os órgãos sociais não executivos não foram uma invenção local, mas mais uma importação para ficar bem na fotografia europeia. Por outro lado, dominados por uma cultura profundamente não confrontacional (qualquer crítica é sempre um insulto pessoal) e elites cooptadas (em vez de concorrentes), os órgãos sociais não executivos encontram um terreno árido e hostil para exercer o papel para que foram criados. A cultura das elites portugueses sempre apreciou mais o “entrar mudo e sair quedo”…
Num mundo económico dominado por concentração de capital, é possível que as ornamentações de Natal não sejam um grande problema. Afinal, são os acionistas (concentrados) quem paga o preço da má gestão. A questão já muda de figura quando o Estado socializa as perdas da gestão danosa (como no caso dos bancos). E, evidentemente, agrava-se em instituições onde não há acionistas concentrados para sofrer as perdas – setor privado com capital excessivamente disseminado em bolsa, setor público, IPSS, fundações. Portugal tem um enorme défice de fiscalização e supervisão, os órgãos sociais não executivos tendem a funcionar francamente mal (não há escândalo financeiro nos últimos anos onde isso não seja absolutamente manifesto), há uma cultura de irresponsabilidade e complacência, mas felizmente nada disso preocupa o mundo político.
Em Portugal, só poderia haver um qualquer indício de conflito de interesses quando a pessoa em causa não estivesse certificada como honestíssima pelas figuras públicas