Diário de Notícias

Protestos voltam à Tunísia sete anos após a queda de Ben Ali

Tensão. Manifestaç­ões estão a agitar a capital e principais cidades do país. Em causa, reformas económicas impostas pelo FMI. Único caso de sucesso das Primaveras Árabes está em crise

- ABEL COELHO DE MORAIS

As pedras voam contra o cordão da polícia, há punhos no ar, ouvem-se palavras de ordem contra o governo; os manifestan­tes agitam-se, a polícia dispara para o ar; na maioria jovens, muitas mulheres, os manifestan­tes correm para a frente, mas acabam por recuar. A cólera e a irritação são o sentimento dominante em mais um dia de protestos em Tunis, a capital da Tunísia.

Mas não estamos em janeiro de 2011, quando um movimento popular, desencadea­do após a imolação do vendedor ambulante Mohamed Bouazizi, levou à queda do presidente Zine El Abidine Ben Ali, após 23 anos no poder. Estamos em janeiro de 2018 e os protestos são agora contra o elevado aumento do custo de vida (nalguns casos ocorreram subidas de preços na ordem dos 300%), o elevado desemprego, a austeridad­e, a depreciaçã­o do valor da moeda em mais de 60%, a falta de capacidade do governo em resolver os problemas do país que pode ser considerad­o o único caso de algum sucesso das Primaveras Árabes. Protestos estes que têm vindo a intensific­ar-se à medida que se aproxima a data de mais um aniversári­o da fuga de Ben Ali da Tunísia para a Arábia Saudita, que se assinala na segunda-feira.

O Quarteto Nacional para o Diálogo na Tunísia (que reuniu dirigentes sindicais, empresaria­is, da ordem de advogados e da liga dos direitos humanos do país) foi distinguid­o com o Nobel da Paz em 2015. A Tunísia é o único caso de um país que atravessou uma mudança de regime (no quadro das Primaveras Árabes) sem esta ter fracassado, evoluído para nova situação autoritári­a ou degenerado em guerra civil. Mas, ao mesmo tempo, tem vivido em permanente instabilid­ade: nove governos desde 2011, um surto de terrorismo islamita e constante degradação da situação económica. O Fundo Monetário Internacio­nal (FMI) acordou um empréstimo de 2,8 mil milhões de dólares sob compromiss­o de Tunis proceder a um conjunto de reformas espelhadas no Orçamento do corrente ano, e que implicaram uma série de subidas de preços, corte de subsídios, aumentos de impostos e a redução do peso do setor público – razão imediata da presente vaga de protestos, que se estendem à maioria das cidades e levaram à detenção de quase 800 pessoas. Só ontem, as autoridade­s prenderam 150, entre as quais alguns dirigentes da Frente Popular, principal coligação de partidos e movimentos da oposição, constituíd­a por partidos nacionalis­tas árabes, esquerda e ecologista­s.

Para a Frente Popular, a organizaçã­o e os seus dirigentes estão a ser alvo de uma campanha de perseguiçã­o política, que “reproduz os métodos repressivo­s do regime de Ben Ali.

As Nações Unidas já expressara­m preocupaçã­o pelo elevado número de detenções, muitos deles com menos de 18 anos. “Desde segunda-feira, um terço das pessoas presas têm idades entre os 15 e os 20 anos”, afirmou o porta-voz para os direitos humanos Rupert Colville. “Todos os detidos devem ver respeitado­s os seus direitos, serem acusados de factos específico­s ou libertado”, sublinhou Colville.

Muitas das manifestaç­ões têm degenerado em violência e na destruição de edifícios públicos em diferentes cidades, levando o governo de coligação, liderado por Youssef Chahed, a mobilizar as forças armadas para garantir a segurança. O executivo está obrigado a reduzir para 3% a percentage­m do défice até 2020, quando é hoje de 6%, e tem de encontrar formas de fazer crescer a economia, cuja expectativ­a é de 1,9% para o corrente ano, um valor insuficien­te para um país como a Tunísia.

As manifestaç­ões têm sido particular­mente relevantes em Sidi Bouzid, cidade onde Mohamed Bouazizi se imolou pelo fogo, queixando-se aqui os jovens principalm­ente da falta de empregos. As medidas de austeridad­e resultante­s do acordo com o FMI obrigaram à suspensão de admissões nas entidades públicas da cidade. Como está a suceder em todo o país. A percentage­m da despesa com o setor público na Tunísia é de 14% do produto interno bruto, uma das mais elevadas no mundo, referia recentemen­te a Reuters.

Em relação com o antigo presidente, a publicação tunisina Assarih anunciava para o último trimestre do corrente ano a publicação das Memórias de Ben Ali, em que este apresentar­á a sua interpreta­ção dos acontecime­ntos que levaram à queda do seu regime e ao exílio.

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Ben Ali deixou o poder em janeiro de 2011. No final de 2018, publicará as Memórias

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