Diário de Notícias

Largou tudo e foi para o Chade. “Era feliz a 99% e faltava-me 1%”

Joana Gomes, de 29 anos, natural de Lisboa, decidiu trocar o certo pelo incerto e foi trabalhar com refugiados sudaneses da guerra no Darfur que vivem em campos da ONU no Chade

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PATRÍCIA VIEGAS Joana Gomes era feliz a 99%. “Tinha tudo o que a sociedade diz que é o sonho de qualquer pessoa: contrato efetivo, carro, casa, dinheiro, família, amigos. Mas eu percebi que a felicidade está nos 100% e por isso decidi ir atrás do 1% que ainda me faltava”, conta ao DN a jovem lisboeta de 29 anos, que há um ano trabalha no Chade para o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS).

Formada em Serviço Social e Recursos Humanos, pela Universida­de Católica e pelo ISCTE, trabalhava como assistente social e coordenado­ra do gabinete de ação social do Colégio São João de Brito. Decidiu ir fazer voluntaria­do para a Sicília, em Itália, pois já antes tinha tido uma experiênci­a no Brasil. “Fiquei num centro que era só para homens africanos. Muitos não falavam. Tinham depressão. Eram do Senegal, Malawi, Chade... Aquilo que se fala agora sobre a Líbia, já eles falavam em 2015. Os árabes não gostam dos pretos e eles lá na Líbia não podem ficar.”

Voltou a Lisboa, quis despedir-se do trabalho que tinha. Não a deixaram e deram-lhe um ano sabático para voltar para a Sicília. No entretanto foi bater à porta da sede do JRS em Roma e disse que queria trabalhar com eles. Perguntara­m-lhe onde e ela respondeu que estava disponível para ir para onde ninguém mais quisesse ir. Apresentar­am-lhe a opção do Chade, avisando-a de que era perigoso. A resposta saiu-lhe prontament­e: “Mais do que medo de morrer, tenho medo é de não viver.”

Novamente voltou a casa para pedir a demissão. E desta vez não houve mesmo volta a dar. A 10 de janeiro de 2017, há um ano, estava a apanhar o avião para o Chade. País sem acesso ao mar, localizado no centro-norte de África, tem como presidente, há 27 anos, Idriss Déby e faz fronteira com países com situações muito difíceis, como por exemplo a República Centro-Africana, a Nigéria, o Sudão.

Joana vive em Goz Beida, a cerca de 1000 km de Djamena, cidade que é a capital do Chade. Aquela é a zona de fronteira com o Sudão, país de onde são oriundos os refugiados que vivem nos 12 campos geridos na zona pela ONU. Mais propriamen­te do Darfur, região do Oeste do Sudão onde, desde 2003, a guerra já fez cerca de 300 mil mortos e levou pelo menos 2,5 milhões de pessoas a fugirem de casa.

O JRS tem projetos nesses 12 campos de refugiados, sobretudo na área da educação. E Joana é responsáve­l por três deles. “No campo de Djabal vivem 20 mil refugiados, no de Goz Amir, o segundo maior, vivem cerca de 33 mil e na aldeia de Kerfi entre mil e três mil”, explica a jovem portuguesa, que sempre foi católica e que, além da avó, Nené, tem entre as suas figuras inspirador­as a Madre Teresa de Calcutá e Jesus Cristo. “Pensei em ser freira, mas rapidament­e tive o discernime­nto de perceber que não precisava sê-lo para cumprir a minha missão e pôr os meus dons ao serviço dos outros.”

No terreno, onde gosta de estar, Joana e a sua organizaçã­o prestam assistênci­a na construção de escolas, na formação de professore­s, na alfabetiza­ção de crianças e também de adultos, fazem sessões de esclarecim­ento sobre gestão menstrual e de higiene. “É um país muçulmano e ainda há muitos casamentos forçados e infantis. As raparigas não falam da menstruaçã­o nem de nada. É um tabu. Aparecem grávidas e não sabem.”

Viver no Chade é uma aventura. É difícil ver que não há cadernos suficiente­s e as crianças escrevem na areia no chão. Internet, quando há, dá para atualizar a página de Facebook Trocar o Certo pelo Incerto. “O meu dia a dia é feito de imprevisto­s. Habituei-me a estar sempre a suar. Não tenho água canalizada em casa nem eletricida­de 24 horas. Tenho um rato que vive lá”, conta, rindo, confessand­o que, apesar de ter sido o melhor ano da sua vida, a certa altura pensou desistir.

“Perdi o centro. Mas depois fiz retiros espirituai­s da vida quotidiana e pensei no que é que me trouxe ali em primeiro lugar. Ser obrigada a viver na simplicida­de ensinou-me a aceitar o pouco que se tem. Aprendi a viver com o essencial. Não sei se vou ficar ali para sempre [volta nesta quarta-feira dia 17]. Mas sinto que estou onde tenho de estar agora e que isso é o 100%.” Que lições tem para transmitir? “Todos devemos procurar o nosso 1%. Todos temos o nosso Chade. E ele pode ser qualquer coisa.”

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