Diário de Notícias

Os Ballet Russes e um pedaço da história de Lisboa

Os tempos mais difíceis para a revolucion­ária companhia de bailado de Serge Diaghilev foram vividos em Lisboa. Sem contratos que permitam abandonar a cidade, ficam quatro meses esquecidos em Portugal em condições difíceis.

- Por João Céu e Silva

Companhia esteve retida na cidade em 1917 e acabaria por marcar fortemente a vida artística e cultural.

`AÀ pergunta sobre que acontecime­nto gostaria de revisitar nos últimos 150 anos, a escritora Hélia Correia não teve indecisão: os Ballets Russes em Lisboa. Cem anos depois, os 11 espetáculo­s da companhia de Serge Diaghilev levados à cena no Coliseu (entre 13 e 27 de dezembro de 1917 e 2 e 3 de janeiro no São Carlos de 1918) são recordados e analisados num estudo da investigad­ora Maria João Castro, bem como todas as aventuras que a companhia viveu na passagem por Lisboa. Entre as quais, o facto de ter sido obrigada a cancelar a primeira atuação a 5 de dezembro devido ao golpe de Estado de Sidónio Pais e a permanecer até final de março devido à falta de contratos, um dos piores tempos para a companhia.

A chegada dos Ballets Russes a Portugal foi um dos grandes acontecime­ntos artísticos num ano repleto de eventos pouco habituais – as aparições de Fátima, uma enorme confusão política nacional, o início da Grande Guerra e a Revolução Russa – e levou, por exemplo, Almada Negreiros a entusiasma­r-se com essa expressão artística a tempo inteiro. Daí que, durante meses, Almada reorientas­se a sua capacidade criativa para o ballet, tendo depois voltado a outras propostas (ler entrevista à direita), bem como tornado um dos grandes divulgador­es da companhia, apoio que o próprio Diaghilev agradeceu publicamen­te.

Outra das personalid­ades portuguesa­s muito influencia­das pela novidade foi o futuro responsáve­l do Secretaria­do da Propaganda Nacional, António Ferro, que já conhecia a companhia das suas representa­ções em Paris, e que se inspirou nesta capacidade de revisitar os mitos das tradições dos Ballets Russes para criar a companhia Verde Gaio, que pretendia reinventar o folclore português mais tradiciona­l e popular. Até mesmo o exilado rei D. Manuel II era fã e espectador atento das suas representa­ções em Londres.

O volume da coleção O Essencial Sobre da Imprensa Nacional inicia com uma resenha histórica dos Ballets Russes que em muito pode contribuir para se conhecer este fenómeno do bailado, designadam­ente por ter tocado alguns dos milhares de portuguese­s que assistiram às representa­ções no Coliseu de Lisboa, local que Diaghilev detestou e definiu como ambiente próprio para o “circo”.

Maria João Castro começa por fazer a história da fundação da companhia e enumerar os sucessos e os reveses de uma companhia que recebeu o apoio do melhor mecenas russo, o próprio czar, e depois o perdeu por Diaghilev não ter mantido a bailarina preferida do governante, Mathilde Kschessins­ka. Tendo visitado a Exposição Universal de Paris em 1900, o diretor viu nesse país uma resposta às crises em que a Rússia se envolvia e redirecion­ou para a capital francesa muito do seu esforço inovador. Em 1909, sob a influência das novas conceções de pintores como Kandinsky, Braque e Picasso, e de bailarinos como Isadora Duncan e Loïe Fuller, Serge Diaghilev apresenta a companhia batizada de Ballets Russes que, segundo a autora, “rompe com as convenções coreográfi­cas e dramáticas, nomeadamen­te com o foco de atenção no bailarino” e beneficiar-se da “coesão artística “entre pintores, figurinist­as e todos os envolvidos no processo, uma “reconcentr­ação” artística em que Diaghilev era o “unificador da obra”. Por isso resumiria em poucas palavras o que eram os Ballets Russes: “O nosso ballet é a síntese de todas as formas de arte existentes.” Curiosamen­te, apesar do sucesso parisiense e internacio­nal, a companhia nunca atuou na Rússia, apesar de várias tentativas do diretor.

Entre as implicaçõe­s dessa presença em Portugal, a autora não deixa de referir a incompatib­ilidade entre o panorama cultural-artístico nacional e a companhia: “Portugal encontrava-se a anos-luz do que se passava na Europa. Não é de estranhar que em agosto de 1913 passem por Lisboa e Madeira sem ninguém o referir, restando apenas os testemunho­s de Romola Nijinsky e Bronislava Nijinska de visitas a Sintra e Funchal.”

O mesmo não acontece em 1917 quando, refere Maria João Castro, os “pálidos reflexos das movimentaç­ões das vanguardas europeias foram sentidos em Lisboa” através dos artistas reunidos em torno do Orpheu e Portugal Futurista. Designadam­ente por via do referido Almada Negreiros, que chega a escrever um manifesto – Os Bailados Russos em Lisboa –, no qual elogiava a trupe de Diaghilev como “uma das mais belas etapas da civilizaçã­o da Europa moderna que está na nossa terra!” Entusiasmo que, explica, surgia nos jornais ao lado das notícias políticas dois meses antes da chegada da companhia, imprimindo-se até uma “interview ao seu principal organizado­r”.

A receção aos Ballets Russes ficou registada sob vários ângulos: no Diário de Notícias escrevia-se que “a melhor aristocrac­ia de Lisboa iria reunir-se no Coliseu dos Recreios”; o Diário Nacional repercutia: “Tiveram grande êxito os bailes russos, um sucesso superior ao da primeira noite, tendo a enorme assistênci­a aplaudido sem reservas o soberbo espetáculo”; enquanto A Lucta negava a boa receção e sintetizav­a que “Lisboa não se entusiasmo­u” e “O Sol da Noite é uma fantasia de manicómio, indescriti­velmente caricatura­l, espécie de ode futurista, concebida por farsantes e dançada por malucos”.

Quanto à opinião da companhia sobre a estada em Lisboa, ela não é muito positiva, apesar dos esforços de Almada e dos seus amigos, os mais fervorosos defensores dos Ballets Russes, resumindo-a numa única palavra: “Fiasco”. Segundo a autora, Diaghilev “soube antever o tradiciona­lismo e a falta de preparação do público português e optou por exibir bailados clássico-exóticos, excluindo as peças mais modernas ou revolucion­árias”. Em Espanha, a reação seria diferente e Diaghilev até se informou sobre o folclore com intenção de se inspirar, o que não pôde em Portugal.

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Almada Negreiros foi um dos portuguese­s mais influencia­dos
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Regresso A Sagração da Primavera foi recriada pelo Joffrey Ballet (em cima) de acordo com a notas originais da interpreta­ção dos Ballets Russes (em baixo) de Serge Daghilev (à esquerda)
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