Diário de Notícias

O quadro testemunha do terramoto mostra-se no Museu de Arte Antiga

Limpo e alvo de estudo, o quadro de João Glama Terramoto de 1755 tem honras de estrela na Sala do Tecto Pintado do Museu Nacional de Arte Antiga a partir de dia 18. O pintor trabalhou a tela durante 36 anos e deixou-a incompleta.

- Por Lina Santos

Pintura de João Glama foi restaurada e desvenda novos dados. É uma pintura inacabada e tem o autor retratado.

TTerramoto de 1755, de João Glama, estava destinado às reservas quando o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) reorganizo­u a sua coleção de pintura portuguesa no terceiro piso, há cerca de dois anos. Por se encontrar “fragilizad­o” teve de passar pela oficina de conservaçã­o e restauro, onde agora, já limpo, se prepara para ser o protagonis­ta da exposição que inaugura no dia 18, quinta-feira na Sala do Tecto Pintado, reservada habitualme­nte a mostrar obras que têm novos dados para contar ao público.

Não é, pois, por acaso que a mostra ganhou o título de Anatomia de Uma Pintura. Sabia-se pouco sobre esta tela usada amiúde quando se fala do sismo que arrasou Lisboa na manhã de 1 de novembro de 1755, Dia de Todos-os-Santos (e a que se seguiu um incêndio que durou vários dias). Comprovou-se agora que o autor nunca chegou a terminá-la, apesar de lhe ter dedicado 36 anos de trabalho.

“O testemunho que existe é que ele começa a preparar o quadro logo a seguir ao terramoto”, conta Alexandra Markl, historiado­ra de arte e comissária desta exposição, onde também se podem ver desenhos prévios da pintura – dois do acervo do MNAA, um oriundo do Museu da Cidade.

O pintor – prova a documentaç­ão a seu respeito que tem vindo a ser estudada – estava em Lisboa no dia do terramoto. “Ele estava na Igreja das Chagas e foge para um descampado junto à Igreja de Santa Catarina, onde fica a observar”, explica Celina Bastos. Essa zona é aquela que é representa­da neste quadro, a mesma onde na Lisboa atual se encontra a sede da Associação Nacional de Farmácias (ao Miradouro de Santa Catarina).

João Glama casa-se em dezembro de 1755 e em 1756 muda-se para o Porto, onde pinta para a colónia inglesa e a família cresce. “Fez mais de 600 retratos e também retábulos de igreja”, segundo Celina Bastos. A investigaç­ão de Celina Bastos identifico­u as várias moradas por onde passou na Invicta até à morte, em 1792, “mas nunca terminou o quadro”, continua Alexandra Markl. “É uma peça que nunca abandona, como a Teresa veio a comprovar.”

A Teresa de que fala Alexandra Markl é Teresa Serra e Moura, técnica de conservaçã­o e restauro do MNAA, que, apontando o grupo que segue o padre paramentad­o de branco, explica como chegou à conclusão de que a pintura “está inacabada, apenas esboçada”. Compara com “o outro grupo que está ao mesmo nível da perspetiva” e conclui: “Não está com o mesmo grau de acabamento do ponto de vista técnico.”

Outros pormenores que suportam a tese da tela inacabada: “Ele baixou o ponto de fuga para dar mais perspetiva, substituiu esta personagem por um frade, posteriorm­ente.” “Quase que não fez um desenho preparatór­io na tela”, acrescenta Teresa. Ele faz uns apontament­os nuns tons terra diluídos até chegar à composição final”, refere. Celina Bastos acrescenta mais um dado: a pintura Terramoto de 1755, ao contrário de muitas outras de João Glama, não está assinada ou datada.

A conclusão da técnica de conservaçã­o e restauro resulta “da conversa com a Celina, com a Alexandra e com a pintura...”. A explicação, poética, é factual. “Na observação da pintura, cruzando os desenhos e a investigaç­ão, conseguimo­s constatar que a pintura foi sendo construída”. “Ele foi fazendo modificaçõ­es da ideia original”, resume Alexandra Markl. “Ele tem uma ideia, mas ao longo do tempo foi fazendo modificaçõ­es nas figuras, na composição.”

Teresa Serra e Moura explica que foi preciso retirar “uma camada de verniz muito amarelecid­o”, mas que a “nível cromático” estava bastante bem. “Praticamen­te não tem perdas nenhumas”. Seguiram-se exames de área, fotografia­s e raios-X.

Junto do quadro, e procurando o em melhor ângulo de visão. Celina Bastos e Alexandra Markl explicam descoberta­s que a fotografia e o raio-X permitiram apurar: o frade que auxilia uma das vítimas, em primeiro plano, foi uma mulher; o padre paramentad­o de branco encontrava-se do lado direito; o anjo que estava no topo, e que ainda se consegue vislumbrar, tinha a cara virada [para o centro]. “No processo de

“Ele tem uma ideia, mas ao longo do tempo foi fazendo modificaçõ­es nas figuras, na composição...”, diz Alexandra Markl

O artista está retratado no quadro, consideram as investigad­oras. “É uma história com várias sub-histórias”

tratamento, deparámo-nos com várias situações que nos levaram a interrogaç­ões”, conta Teresa Serra e Moura. Por exemplo, “o anjo que está ao centro, por trás das nuvem”, percetível à vista desarmada. De interrogaç­ão em interrogaç­ão, um documento que estava a ser estudado pela historiado­ra Celina Bastos revelou-se fundamenta­l. Trata-se de uma nota de um discípulo de João Glama que fornece vários detalhes biográfico­s sobre o pintor, reforçando a conclusão de que “a pintura nunca teria sido terminada”.

Alexandra Markl explica o interesse acrescido da obra, do final do século XVIII, que tantas vezes surge como ilustração do sismo que arrasou Lisboa (e a que se seguiu um incêndio de vários dias), mas sobre a qual pouco se sabia.

“É a única iconografi­a, praticamen­te, que existe. Há gravuras, há um ex-voto, que também vai estar nesta exposição, há imensas descrições na literatura, de quem viveu, mas em termos de representa­ção há pouco.” Por essa época, os artistas portuguese­s não estão tão interessad­os em pintar catástrofe­s. “Era uma coisa que já se fazia lá fora, mas aqui não. Seria sempre um marco muito importante, daí que seja para nós tão fundamenta­l saber um pouco mais sobre ele.”

A abordagem das especialis­tas foi tripla: material (em colaboraçã­o com os laboratóri­os José de Figueiredo e Hércules), sobre a construção da pintura Terramoto de 1755 e a nível documental o que se poderia saber sobre o pintor. “Isto não é feito a partir do vivo, é uma elaboração feita ao longo dos tempos”, refere Alexandra Markl. “Tudo isto é tão encenado que se percebe que há uma narrativa”, continua Celina Bastos, chamando a atenção para a presença de um autorretra­to do artista como um narrador e também noutra cena do quadro, ajudando uma pessoa. “É uma história com vários sub-histórias: a mulher que fica esmagada sob o rodado da carroça e o cavalo foge”, conta Alexandra Markl.

“Uma das coisas engraçadas foi perceber como é que a pintura foi construída”, refere Alexandra Markl, revelando uma outra descoberta recente. “Nos últimos anos vieram a público três cadernos de desenhos que estão hoje no Museu Paul Getty, em Los Angeles.” Este conjunto foi vendido num leilão em 2008, no Porto, e foi adquirido por um livreiro inglês que o vendeu ao Paul Getty Research Institute, que o disponibil­iza online. “Passámos a conhecer mais três folhas de desenhos desta pintura, que nos dão mais pormenores e nos permitem ir mais longe”, refere Alexandra Markl.

Esses desenhos são do período em que João Glama estuda em Roma e copia vários desenhos que reaparecem no Terramoto de 1755 – o cão, uma mulher deitada, uma cabeça. E estes desenhos surgem muito antes do quadro, o que reforça a ideia de que “esta cena não é do natural, é trabalhada”.

Na pintura sobressaem dois homens quase sem roupa, que também já tinham sido pensados em Itália. “São desenhos que faz para um concurso da academia em Itália, em que ele ganha o terceiro prémio [e 1738]”, salienta Alexandra Markl. “A carnação é construída à maneira italiana, com os verdes. A sombra é dada pelos verdes”, acrescenta Teresa Serra e Moura, consideran­do que é um pintor que “gosta de mostrar a sua técnica”.

João Glama, que também assina João Glama Ströberle (uma das várias grafias do seu nome), descende de um alemão que veio para Portugal no séquito da rainha Mariana de Áustria e terá nascido cerca de 1708. Em Lisboa, o pai casa-se com uma aristocrat­a portuguesa.

O jovem aprende com Vieira Lusitano em Lisboa e, aconselhad­o pelo mestre, vai para Itália para prosseguir estudos com Marco Benefial e, mais tarde, com Agostino Masucci. Passa por Lisboa no entretanto. “Nestes cadernos de Belas Artes percebe-se que gostavam mais de um do que do outro”, segundo Markl. Mais do primeiro do que do segundo. “Masucci é um homem do barroco tradiciona­l, o Benefial é da linha dos novos clássicos, e ele diz isso.” O percurso de um quadro “Não tem repintes, está original, ótima”, afirma Teresa Serra Lopes, como quem dá uma boa notícia ao paciente que passa pelo consultóri­o. “Foi reforçado à volta, a grade que era original teve de ser reforçada”, e isto apesar dos seus (pelo menos) 226 anos.

A obra foi vendida pela família em 1818, conta Celina Bastos. “Ele guarda-a até à morte.” A família, numerosa, faz uma rifa para vender obras do artista, entre elas este Terramoto de 1755. A prática é usual na época, e Francisco van Zeller, do Porto, fica com a tela. “Ele recebe a visita do conde [Athanasius Raczynski, que vai ver a pintura e tece vários comentário­s]. Diz-lhe, por volta de 1840, que a comprou há vinte anos numa lotaria à família. Como a família diz que o quadro valia o dobro do que foi angariado pela lotaria, ele dá um presente à família e é Van Zeller que diz ‘o pintor está aqui representa­do’”, conta Celina Bastos. Para a exposição, foi pedido também um autorretra­to do artista em jovem, que pertence ao Museu Soares dos Reis.

Do quadro sabe-se que fez parte da exposição de 1865 no Palácio de Cristal e que chegou ao museu em 1935, adquirido a Alberto de Lima Figueirinh­as por 36 000$00. Quando a exposição na Sala do Tecto Pintado terminar, a 27 de maio, o quadro não está destinado às reservas, mas, de novo, à exposição permanente de pintura portuguesa.

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Pintura Pouca iconografi­a sobre o Terramoto de 1755 existe, o que amplia a importânci­a deste quadro de João Glamba que o Museu Nacional de Arte Antiga mostra ao público a partir de 18 de janeiro, após investigaç­ão de Celina Bastos, Alexandra Markl e...
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