Diário de Notícias

O carpinteir­o não perguntou: com fatura ou sem fatura?

- ANA SOUSA DIAS

Imaginar o fabuloso incensório da Catedral de Santiago de Compostela a encher o ar de marijuana foi um momento divertido, hão de concordar. A coisa durou umas horas, não o fumo mas o tempo de validação da notícia: fake news. No dia em que se discute em Portugal se deve ser legalizado o uso da erva para fins medicinais, até parecia uma história feita de propósito. Que um portuguesi­nho valente tivesse ido à imponente catedral de Santiago para fazer valer o seu ponto de vista era uma hipótese. Mas a história falava de dois acólitos galegos como autores do (não) feito, com uma noite passada na prisão.

Era um bom tema para uma crónica, até porque eu podia alongar-me sobre como vi arrasadore­s estragos de quimiotera­pia a ser pacificado­s por uns charros, mas entretanto ouvi a diretora-geral da Saúde dizer o mesmo com palavras mais sábias e decentes.

Foi nesse espírito que me deparei com a notícia de que as consultas de interrupçã­o de gravidez foram suspensas por tempo indetermin­ado no Hospital de Santa Maria, por falta de enfermeiro­s. O mundo anda para a frente e para trás, como se sabe (já agora, gostei de ouvir Rui Rio citar o clássico de Lenine Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás, no debate de quintafeir­a na TSF e na Antena Um, mas não tenho a certeza de que ele o tenha feito de propósito).

Li a notícia e não gostei. Havia logo um primeiro comentário (estas pérolas um dia serão analisadas por antropólog­os, psiquiatra­s e arqueólogo­s e o que vão pensar do pessoal do início do século XXI não será bom) e era o que seria de esperar. Ainda por cima, a notícia é assinada por Fernanda Câncio, e para ela há sempre uma brutal sobrecarga de ódio, desrespeit­o, assédio e infâmia, uma coisa patológica.

Um passo em frente, dois passos atrás, falo das horas que passei na urgência do Hospital de São José nesta semana, a acompanhar uma pessoa muitíssimo minha querida. Foi muitíssimo bem tratada, com uma rapidez impensável em tempo de gripe, porque antes tinha ligado para a linha Saúde 24 e estava tudo a postos, e por isso mesmo nem pagou taxa moderadora. Não era nem gripe nem uma falsa urgência, era uma situação grave e de consulta obrigatóri­a.

O telefonema, atendido com voz tranquila e segura, terminou com um faça isto e aquilo, vá para São José. A sorte estava do meu lado quando fui estacionar, no exterior do hospital, depois de ter deixado a doente bem entregue. Regressei em poucos minutos e já estava a ser observada. Em tempo de contingênc­ia, pude entrar porque ela não estava autónoma.

O médico explicou tudo, saí para o corredor enquanto a medicação era dada. A doente ficou numa cadeira banal, apertada entre outros doentes sentados em cadeiras banais, ligados a balões de soro. As macas, alinhadas e muitas, ocupavam todo o espaço restante, doentes olhando o teto, olhando para dentro. Médicos, enfermeiro­s, auxiliares, tudo a trabalhar sem parar. Uma senhora gritava desabalada­mente, um homem estava ligado ao que me pareceu serem máquinas dos pés à cabeça, um homem tremia sem saber o que fazer. Ouvi muitas conversas em inglês. No corredor, sentou-se ao meu lado um angolano alto e vigoroso, à espera de uma injeção para parar as dores de uma hérnia discal. Amanhã tenho de ir para França trabalhar, não posso parar.

Os meus impostos estão ali, naquele espaço que vive preso por fios mas que milagrosam­ente nos acolhe e nos trata. E portanto venho aqui agradecer ao carpinteir­o que não me perguntou se era com ou sem fatura. Faça o pagamento por transferên­cia na net, a fatura vai por e-mail, pode ser? Este pequeno momento de normalidad­e, sem desconfian­ça, fez-me tanto bem como quando no hospital um segurança me perguntou se estava a acompanhar alguém que não podia estar sozinho, e eu desatei a dar-lhe explicaçõe­s como se ele estivesse a duvidar de mim ou eu estivesse a tentar enganá-lo. E ele, tranquilo e habituado: responda só à minha pergunta. Sim. Então passe, por favor.

E por favor reabram o serviço de IVG em Santa Maria rapidament­e, porque nós confiamos no Serviço Nacional de Saúde, continuamo­s a confiar e temos razões para isso.

Era um bom tema para uma crónica, até porque podia alongar-me sobre como vi arrasadore­s estragos de quimio a ser pacificado­s por uns charros Foi muitíssimo bem tratada, com uma rapidez impensável em tempo de gripe, porque tinha ligado para a linha Saúde 24 e estava tudo a postos O segurança perguntou se estava com alguém que não podia estar sozinho, e desatei a explicar-me. Responda só à minha pergunta. Sim. Passe, por favor

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